terça-feira, 20 de julho de 2004

Glauber e o Golpe: da esperança ao desencanto



Num período como o de hoje, em que as utopias e a palavra “revolução” são vistas como depreciativas e tidas como aberrações, os anos 60 não passam de objeto de estudo datado, passado não só como espaço de tempo na história, mas também como um tempo ultrapassado, “atrasado”. Nada mais tolo e pueril.

Entender o Cinema Novo e os ideais que o motivaram é, ao mesmo tempo, entender toda a geração que teve nos anos 60 seu auge em termos de esperança e transformações histórico-sociais. Geração que também presenciou essa mesma esperança transformar-se em niilismo e desencanto com o golpe militar de 1964. Compreender essa transição de sentimentos através dos filmes de Glauber Rocha é o objetivo aqui.

Contexto político-cultural

O Brasil vinha de uma nova e recente experiência democrática pós-Segunda Guerra Mundial, com o fim da ditadura Vargas. Os anos 50 foram marcados pelo nacionalismo getulista e, em seguida, pelo desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek. Os anos 60 iniciaram-se com a chegada de João Goulart à Presidência da República após a renúncia de Jânio Quadros. Jango era homem de esquerda, de uma tradição gaúcha de governar para as massas, tal qual Getúlio Vargas, seu padrinho político. Logo em 1961, quando assume a presidência, mesmo sob o manto do parlamentarismo, reafirma sua intenção política de reformas nacionalistas em prol do trabalhador e do país. Um pensamento de esquerda enfim encontrava uma política de esquerda para sua realização. Como é dito no documentário Jango, de Silvio Tendler, “Jango, com suas reformas, fez o Brasil viver suas utopias”.

Essa euforia esperançada numa mudança de direção política no Brasil – um governante socialista que implantaria o socialismo no país – não acontecia à toa. O cenário era de mudanças: política e cultura eram assuntos correntes e a revolução social, tão sonhada, se mostrava realizável, seria uma mera questão de tempo. Nunca se viu nesse país uma geração tão politizada como a juventude dos anos 60. Estudantes e intelectuais assumiam intensa militância política e cultural, a UNE (União Nacional dos Estudantes) era forte, com acesso às instâncias do poder, e os CPCs (Centro Popular de Cultura) se organizavam e definiam estratégias para a construção de uma cultural nacional, popular e democrática. Na cidade, o operariado demonstrava sua força pela crescente participação sindical, enquanto no campo o movimento das Ligas Camponesas avançava, principalmente no Nordeste, em busca da almejada reforma agrária.

Todo esse cenário político de transformação os artistas deixaram transparecer em seus discursos, obras de arte e atitudes. O Cinema Novo foi um dos movimentos artísticos que buscaram levar, pela sua arte, a conscientização política e a futura (mas iminente) revolução. Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor, Roberto Santos e David Neves foram cineastas que pensaram o cinema como instrumento de conscientização política (muitos deles faziam parte do CPC, que buscava direta e explicitamente essa conscientização via exibições de filmes, como ocorreu com o filme considerado advento do Cinema Novo, Cinco Vezes Favela).

A idéia era tratar dos problemas do povo para conseguir conscientizá-lo de que uma mudança se fazia necessária e urgente. A revolução estava nos ares e ela precisava de seu agente-mor. O cinema como meio de se atingir a consciência e a posterior revolução. A revolução não somente como um desejo, mas uma necessidade social. A utopia tornava-se possível. Faltava apenas trazer o povo para o campo da ação.

Glauber em cena

A figura de Glauber Rocha surge, definitivamente, no cenário cinematográfico nacional com Barravento, em 1961. Depois de entraves na produção, quando o então diretor Luiz Paulino dos Santos deixa a produção e esta fica a cargo de Glauber, e de pronta a fita (Glauber convocaria Nelson Pereira dos Santos para, na montagem, tentar dar ao filme certa unidade e compreensão), Barravento já mostra do que seria feito o cinema desse baiano agitador.

No filme, Firmino, recém-chegado da cidade, tenta tirar um grupo de pescadores na praia de Buraquinho, na Bahia, explorado pelo dono da rede, da condição passiva e submissa diante da exploração. O filme é construído pela oposição do discurso de Firmino, o elemento perturbador e motor das transformações que ocorrerão em seguida, à passividade da comunidade, gerada principalmente pela religião. O que Glauber faz em Barravento é uma crítica à alienação causada pela religião, coisa que terá novo apontamento em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Em partes ela impediria a revolta e rebelião da população frente a seus exploradores.

Três anos depois de Barravento, Glauber lança o filme que marcaria não só o ápice da utopia revolucionária dos anos 60 no Brasil, como o filme que deixou até hoje marcas de seu culto na cultura nacional. Deus e o Diabo na Terra do Sol foi o impulso de mobilização para a revolta numa era de absoluta esperança nela. Se no final de Barravento o povo não estava preparado para a revolução, ao final de Deus e o Diabo, após passar pela experiência alienante do misticismo violento de Sebastião e da violência mística do cangaço, Manuel, o vaqueiro protagonista, está inteiramente livre para a revolução – a ver o sertão virar mar e o mar virar sertão. Nessa travessia de conscientização, Manuel é levado por Antônio das Mortes, o matador de cangaceiros, que interrompe as duas experiências de alienação nas quais Manuel se envolveu – ele põe fim ao bando de Monte Santo e à aventura do cangaço ao matar e decepar Corisco, o diabo louro. Antônio seria o elemento motor da revolução (Glauber o definiu como personagem deflagrador, pré-revolucionário), tal qual Firmino em Barravento.

Os filmes cinemanovistas pré-64, em especial os acima citados de Glauber, tinham a função de incitar, gerar certo descompasso que levasse o povo à ação, que o tirasse do transe da passividade na qual a religião e outras expressões populares (futebol, festas etc.) tinham papel fundamental na manutenção. A intenção era mostrar que a única saída frente à exploração e alienação seria a violência, a revolta. Os filmes estariam em busca da disponibilidade do povo para essa visão e, principalmente, para a ação. Daí ser o final de Deus e o Diabo na Terra do Sol libertário, revolucionário.

Assim, o povo, libertado das formas de alienação que o mantém na passividade, alcançaria a consciência com a ajuda de um terceiro elemento e, finalmente, poderia fazer o sertão virar mar e o mar virar sertão. A revolução almejada estaria, enfim, apta a ser realizada.

O golpe e a interrupção do sonho

E a revolução veio, mas não aquela esperada pelos cinemanovistas e pela esquerda intelectual do país. Na noite de dia 31 de março de 1964 veio a contra-revolução, a dos militares contra a geração que ansiava pela revolução socialista. A opção por não abrir uma guerra civil no país por parte de Jango entregou o Brasil ao governo militar, apoiado pelo governo norte-americano e por grande parcela da população que, acreditavam erroneamente os militantes de esquerda, estariam do seu lado.

Em carta coletiva para Glauber, que estava em Cannes para a exibição de Deus e o Diabo, em meados de abril de 1964, alguns cinemanovistas tentam colocar o cineasta a par da situação política brasileira. Numa mistura de desilusão e esperança, escrevem:

“Há razões de sobejo para o desespero; para a esperança nós as estamos procurando. (...) mas, efetivamente, a coisa ficou feia por aqui. (...) já sabes que aconteceu: um golpe militar que é apelidado pela imprensa reacionária de 'revolução' e a instauração de uma ditadura militar, apresentada como salvação da 'democracia'. (...) A revolução florida entrou pelo cano”

O cenário era de tensão em razão do rompimento da ordem democrática e a paralisação do processo revolucionário até então em andamento no período. Sem resistência, os militares acabaram por se instalar e organizar um governo baseado na opressão (principalmente pós-68) e voltado a uma política de direita conservadora, de planejamento econômico que excluía a maioria da população. A população civil aquietou-se, com a maioria dela a apoiar o golpe. A classe média brasileira e os meios de comunicação reacionários a acobertaram, muitos a saudaram.

Como crer numa população que aceita as condições impostas pelos militares e que não luta por liberdade? Jabor filmou o documentário Opinião Pública (1968) para justamente mostrar essa classe média alienada diante da situação política de então. Nesse ambiente de questionamentos da passividade da classe média e do povo, Glauber realiza Terra em Transe, obra que se transformaria no balanço da sua própria geração, daqueles que visualizavam a revolução e foram desenraizados com o golpe de 64.

Depois do golpe, o Cinema Novo mudou de rumo e passou a pensar o porquê do fracasso dos projetos de esquerda, o que necessariamente invocaria um movimento de auto-reflexão. Foi essa a engrenagem que tornou mais urgente a discussão sobre a mentalidade do oprimido no Brasil, aquele que anteriormente deveria se revoltar contra a exploração e miséria. Não só do oprimido, mas também de toda a classe intelectual que acreditava estar próxima ao povo e a ajudando em seu processo de conscientização. Terra em Transe será a expressão maior dessa conjuntura cultural e política, um balanço do que foi a geração que pensou o país antes de 1964. Ao mesmo tempo, vai expor toda a ambigüidade do Cinema Novo, que se utilizou de uma linguagem erudita e hermética para dialogar com as massas.

O filme é feito no calor da hora, resultado da experiência vivida no momento de efervescência do golpe. A conclusão a que Glauber chega sobre sua geração envolve uma auto-alienação criada em torno dela mesma. Uma falsa proximidade com o povo por parte dos intelectuais e militantes de esquerda e a aliança com forças da sociedade que os deixaram (a burguesia classe média). Ninguém escapa da câmera de Glauber, nem mesmo ele e seu grupo, que podem ser encarados como o intelectual e poeta Paulo Martins, uma consciência em agonia frente à morte iminente.

Impotente hoje, o militante de esquerda (Paulo Martins) não enxerga as contradições de seu discurso, tal qual o próprio Cinema Novo e sua objetividade contraditória. Idealiza um governo revolucionário e a favor do povo, mas este não tem voz ativa no processo. Quando Jerônimo, homem do povo, quer falar, ele é calado por Paulo Martins, seguido do discurso deste direto para a câmera: “Estão vendo o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado! Já pensaram Jerônimo no poder?” Assim, o povo, agente da revolução, heroizado num momento pré-64, é retratado com desprezo, como massa de manobra inerte e sem nenhuma participação na tentativa de tomada de poder. O povo existiria apenas na abstração retórica do populismo de Vieira. A esquerda, o Cinema Novo e Paulo Martins: todos buscavam uma revolução popular, mas sem o povo...

Nesse sentido, Glauber realizou um filme que é a alegoria do desencanto, nas palavras de Ismail Xavier (O Cinema Brasileiro Moderno, da Editora Paz e Terra), um obituário da sua geração e da política encarada como carnavalesca, da política que muito fala, mas nada faz para mudar. É a crítica da política como mera retórica histórica.

Não apenas os homens conscientes estão em xeque em Terra em Transe. O povo também é objeto de severas críticas. Se em Barravento ele não estava preparado para a revolução, ao final de Deus e o Diabo na Terra do Sol ele era o sujeito histórico apto às transformações. Mas nessa alegoria do Brasil no momento do golpe militar de 64, o povo calou-se e passivamente aceitou o golpe. Portanto, tal fato demonstra não apenas a inaptidão da esquerda em seu processo de conscientização política do povo, mas principalmente que as forças alienantes ainda mantinham a passividade de todos. Como entender a relutância do povo em assumir a tarefa da revolução e como aceitar que esse mesmo povo, mais a classe média, nada fez para impedir a continuação do golpe?

A desilusão de Glauber em Terra em Transe foi o fruto da impotência em que ele e toda sua geração se viu diante dos novos rumos do país. A revolução, que se faria de qualquer maneira porque vista como uma necessidade, naufragou. O modelo nacional e social almejado foi abortado. A esperança de Deus e o Diabo na Terra do Sol cedeu lugar ao desencanto de Terra em Transe. Esse exercício auto-reflexivo de Glauber demonstrou o equívoco da sua geração.

Paulo Martins, em momento de transe e agonia após ser ferido, proclama: “Não é mais possível a ingenuidade na fé, a impotência da fé”. Tais palavras são o balanço também de Glauber para o sonho de revolução vivido nos anos pré-64, tanto de sua geração quanto do povo. Ambos – intelectuais esquerdistas e povo – viveram plenamente a ingenuidade e a impotência da fé, uns pela religião, outros pelo sonho de revolução. Mas ainda hoje a revolução se faz necessária. Só esperamos que o golpe de 1964 tenha ensinado algumas lições.


Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 22/04/2004

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