sábado, 17 de julho de 2004

Entrevista com o cineasta Ugo Giorgetti



Entrevista com o cineasta Ugo Giorgetti realizada na manhã de 28 de junho de
2004 para a equipe 2001 Vídeo

Você considera o seu cinema como um cinema de autor? Você se considera um
cineasta autoral?

Eu nunca pensei nisso não, eu me considero um cineasta que faz os filmes que
quer, se você considerar que é autor, eu aceito, mas eu nunca pensei nisso
não, assim como uma proposição teórica. O que eu gosto é de ter o controle
dos filmes. O que quer dizer ter o controle dos filmes? Ter as decisões na
minha mão, as decisões mais importantes do filme. O que elas são? Roteiro,
casting e montagem final, é isso. Se eu tiver o controle sobre isso eu me
dou por muito feliz. Se você achar que isso é filme de autor, tudo bem para
mim. Agora, eu nunca pensei numa coisa assim, me colocar como um ser que é o
filme, eu sei que eu não sou o filme, é uma infantilidade. Mas manter o
controle das instâncias importantes do filme, isso eu faço questão.

O que se considera como cinema de autor é aquele que tem uma identificação
autoral. A tua obra revela uma estrutura particular feita por uma única
pessoa. Assim, você seria um cineasta autoral. Porque todos os seus filmes
tem uma cara extremamente definida, saindo de uma alma única.

Provavelmente exatamente pelas razões que eu falei antes se você concentra o
roteiro que eu escrevo, o casting que eu escolho, e a montagem final que
basicamente eu aprovo se é que eu não determino, eu confesso que seria um
arbitrarismo absoluto, quase uma tirania absurda, não há nada de democrático
nisso, mas é uma maneira de fazer cinema eu acho.

Você fez o roteiro de todos seus filmes. Cabe um dia você filmar um roteiro
que não é seu ou isso é inviável?

Não, não é inviável, não. Como dizia um educador brasileiro importante: "Eu
não tenho nenhum compromisso com as minhas idéias", o que eu fiz não quer
dizer que eu vá fazer, isso não, o problema é que você é brasileiro, tudo é
muito incerto, né? O Paulo Emilio sabia disso, ele costumava dizer que não
há cinema brasileiro, há filmes; não sei se isso é verdade. Então, é muito
difícil você ter um manancial de roteiros a sua disposição, você ter
roteiristas que trabalhem com você, é difícil porque a estrutura de cinema
não permite isso.

Você cria o roteiro a partir de uma idéia tua, você nunca adaptou, por
exemplo, uma obra literária. Você adaptaria uma obra literária?

Adaptar uma obra é uma outra coisa, se você fizer um roteiro e me trouxer,
que saiu da sua cabeça, e você fez um roteiro originalmente para cinema, eu
não teria nenhum problema em examinar se coincide com o meu universo, e por
que não filmar? Isso é uma coisa, agora, outra coisa é pegar um livro e
adaptar pra cinema. Aí eu tenho uma série de preconceitos, por exemplo, eu
acho que o cinema faria muito bem se deixasse a literatura em paz porque
normalmente quando você adapta uma obra, não faz nenhum bem para o cinema, e
faz muito mal para a literatura em geral. É muito difícil inclusive porque
acho que tem a ver mas não tanto. Um livro é um livro, ele tem uma
estrutura, uma técnica, uma maneira de narrar os acontecimentos,
completamente deferente do cinema. Se você pegar um grande... Eu não
consigo... Assim... Rapidamente, me lembrar de um grande livro que tenha
tido uma grande adaptação, talvez O Leopardo, de Visconti. Mesmo assim,
Visconti foi adaptar O Estrangeiro, de Albert Camus, e fez um negócio
desagradável. É complicado isso aí. Isso é um ponto. Eu acho que o cinema
tem que ser adulto, criar sua própria dramaturgia; tem que criar seus
roteiros originais para crescer e não ser caudatário da literatura Esse
negócio é besteira, fala-se assim "nós estamos divulgando o Flaubert". Pô,
divulgar Flaubert? Flaubert tem mais leitores hoje, depois de tanto tempo
que ele escreveu, uma coisa mais do que centenária, que nenhum filme vai
chegar. Isso é uma idiotice e normalmente você não faz à altura da obra.
Quando não - o que é pior - é você usar a obra para alavancar o filme. Se
você é um diretor, como eu, é um risco muito grande, você fazer um filme, no
qual você escreve o roteiro e dirige - e o sujeito vai ao cinema para ver
inteiramente uma coisa que você concebeu. Agora, digamos que eu escolho um
grande nome da literatura brasileira. Primeiro lugar, esse nome consagrado
terá leitores, portanto já, você tem um primeiro pensamento que é o seguinte
esses leitores provavelmente se sentirão impelidos a ver o filme, então você
já tem um mercadinho. Depois, se eu falo "Graciliano Ramos", eu já me coloco
em uma estatura intelectual interessante, pelo menos eu devo ter lido
Graciliano Ramos para poder fazer o filme. E, no fim, acabo dividindo a
mesma responsabilidade com Graciliano Ramos, que é inatacável, pô. Quem vai
atacar Graciliamos Ramos? Muita gente alavanca e tem como substrato, de sua
obra, um grande nome literário e geralmente estraga o nome literário. Então
por essas razões, eu acho que eu não gostaria de adaptar livro, embora eu
ache que um livro, como o Ateneu, do Raul Pompéia... Eu faria esse filme.
Mas não me atrevo porque é um grande livro. Outra coisa é o respeito que eu
tenho pela literatura.

Agora dentro da sua filmografia, você mantém sua veia documentarista
paralelo à produção ficcional. Poucos cineastas fazem isso; ou ele é só
documentarista ou só faz ficção; e você está sempre intercalando ou
misturando as duas coisas. Por que isso?

Eu gosto de filmar e nos últimos trinta e poucos anos eu saio da minha casa
todo o dia para fazer cinema, comerciais para televisão ou não. Eu não
consigo ficar parado esperando fazer um filme a cada três anos, realmente
não é possível pra mim isso. Eu filmo qualquer coisa, tenho uma necessidade
biológica de filmar [...] não quer dizer que o documentário seja qualquer
coisa, muito pelo contrario, mas o documentário é mais viável
economicamente, mas em geral, isso do ponto de vista do orçamento de
problemas de profissão ele é muito mais viável que o longa-metragem, por
tanto ele pode ser feito com menos recursos. Então eu faço tranqüilamente
documentários também por isso, e depois também porque nos meus filmes são,
se você for examinar a ficção que eu faço, ela é um pouco documental. Ela
passa um pouco pelo documentário. Eu gosto muito do documentário.

Quais foram e são suas influências cinematográficas?

Olha, eu tenho uma teoria muito particular a respeito disso, e não é
brincadeira, nem ironia, é, é um pouco de ironia, mas não totalmente. A
influência é com quem você trabalha, não com quem você vê, isto é, não
adianta você ir ver 200 filmes do Robert Altman e dizer que ele foi uma
influência, porque você nunca viu o Robert Altman na sua vida. A influência
que você tem, na minha opinião, é de um diretor com quem você trabalhou, com
quem você viu, você viu o cara trabalhar, você sentou com ele num boteco,
botou uma cerveja no meio, começou a discutir com ele e o cara deu algumas
dicas, porque o cinema é muito feito de dicas técnicas, de pequenos truques.
E não é olhando na tela que se aprende isso. Sinceramente, falando sério, a
grande influência que eu tive foi um diretor de comerciais, com quem eu
trabalhei, que é o Julio Xavier de Silveira, que está aí até hoje, que só
fez um filme de longa-metragem e depois ele não quis fazer mais. Mas, é
verdade, uma das grandes influências que eu tive foi o Chick Fowle, o
fotografo do Cangaceiro e do Pagador de Promessas. Então, eu sentava com o
Chick Fowle e conversava com ele sobre fotografia e montagem. Outra grande
influência foi o Roberto Santos, que eu sentava no bar e conversava com o
Roberto, não é que o Roberto fosse um diretor sueco, o Bergman, que estava
na ilha dele lá, de Faro, e eu aqui, achando que ele estava me
influenciando. Quem me influenciava era o Roberto e a gente sentava num bar
na esquina da Rua Fortaleza com a rua Conselheiro Carrão e batia papo. O
Walter Carvalho, não o Walter Carvalho do Rio, nosso Walter Carvalho aqui,
que é um fotografo de comerciais importantes, também com ele. Então, as
influências são com quem você tem contato; eu acho muito complicado você ter
uma influência de um diretor de fora. Você pode gostar, você dizer quais são
os teus diretores favoritos, isso é outra coisa. Agora, quem influenciou a
mim? Essa gente com quem eu trabalhei.

No seu cinema, você tem sempre uma situação com um grupo de personagens, que
estão inseridos num contexto específico, vivendo numa determinada situação,
mas que não pertencem àquela situação.

Bom, primeiro lugar é engraçado você falar isso porque você é uma das
pouquíssimas, acho que raríssimas pessoas que fez essa leitura, que eu acho
muito boa por sinal. Mas normalmente a leitura é fácil, não, o cara faz
filmes sobre a cidade de São Paulo. Eu não sei explicar, provavelmente, deve
ter alguma coisa em mim também de deslocado, eu acho. Não é consciente, nem
eu tinha me atentado a isso. Eu também não tinha percebido isso com a força
que você está colocando, mas eu concordo que deve ter alguma coisa de
pessoal nisso evidentemente. Eu não tenho nenhum filme que seja
autobiográfico, mas talvez todos sejam autobiográficos de certa maneira.

Essa idéia comum que você é um cineasta paulistano, essa imagem te incomoda?
Você utiliza bem São Paulo como cenário, você gosta da cidade de São Paulo,
mas isso não é o mais importante do teu cinema. Você é sempre rotulado pela
mídia. Agora, de "cineasta paulista" para "cineasta do futebol", depois de
Boleiros.

Eu acho inevitável porque você tem uma superficialidade, tirando alguns
críticos importantes. Aliás, muitos poucos críticos falam isso, quem fala
isso geralmente é o jornalista de plantão, é o cara que vem te entrevistar,
não é aquele que analisa o teu filme. Então, ele parte para o fácil, para o
imediatamente acessível: Ah, cineasta paulista, futebol, etc. Eu acho
inevitável, eu não vou ficar mudando por causa disso entendeu. Agora, é
engraçado, tirando o Campos Elíseos e O Príncipe também, que é um filme um
pouco mais localizado, o resto pode ter endereços, mas no Jogo Duro é feito
numa casa, não é feito na cidade, uma casa num bairro . A Festa não aparece
um único plano da cidade, e no Sábado aparece um plano da cidade no fim do
filme. Boleiros também é confinado num bar. Eu sou muito preguiçoso para
filmar fora. Primeiro eu nasci aqui, não tenho nenhuma vinculação nem com a
natureza, nem com o campo, nem com outros "brasis", que tem por aí, que eu
acho também importantes. Mas eu tenho meu próprio Brasil que é isso aí. Não
vou ficar adaptando livro no sertão, que ainda vai me causar picada de
inseto. Mas eu acho que é inevitável.

Assistindo ao documentário Uma Outra Cidade, e vendo todo o engajamento da
tua geração naquela época, e associando ao Príncipe, percebemos no filme que
os intelectuais vivem numa situação de conformismo social. Você acha que
essa é a situação da intelectualidade hoje? O personagem do Ewerton de
Castro em O Príncipe, por exemplo.

Não tenha duvida nenhuma. Você pode reparar que dentro das questões
brasileiras o intelectual se limita a dar aula, ele não participa
efetivamente. Não há grandes manifestações no Brasil, mas eu acho que também
deveria partir do intelectual a organização de manifestações publicas, por
exemplo. Você pode ver que, até nos anos 80, qualquer manifestação em Paris,
na frente, estavam os intelectuais. Aquelas fotos do Foucault, e não sei
quem mais, na linha de frente. O cara não vai ficar dentro da escola. Aqui,
eu acho que o intelectual recua, ele fica num gueto, ele escreve no Mais!,
ele tinha que escrever na primeira página da Folha, em tendências & debates.
Alguns escrevem, mas tinha que ser mais contundente. Não, ele se confina num
gueto que é a universidade, que é o Mais!, que é não sei o que, que é a
revista não sei o que lá. E você pega, é claro, um cara combativo como
Antonio Candido, que agora está com mais de 80 anos e representa uma outra
geração de intelectuais; é difícil exigir dele a contundência que ele tinha,
né? Mas, não vejo, não, não vejo mesmo, acho muito pouco crítico. O único
intelectual que eu vejo hoje na linha de frete é o Roberto Mangabeira Unger.
Esse é o cara, na minha opinião, e na minha opinião porque geralmente eu
erro. Eu acho que o Mangabeira Unger é o intelectual, é o cara que vai,
propõe, sai pra porrada. O resto é gente que tem um saber mais ou menos
louvado, muito especializado também. Esse é outro problema, o sujeito é
especialista em um filósofo, é esquisito. O Janoti é um homem combativo
também, mas ele fica muito sujeito aos assuntos da universidade, eu não sei,
mas é um homem também combativo. Mas se você perceber o tamanho do Brasil,
eu acho que tem muito pouca chama para nós mudarmos isso. De quem teria que
partir isso? Dos intelectuais.

Você queria provocar o quê? O que você tentou discutir? O que te incomodava?

Em primeiro lugar, acho que O Príncipe é uma historia sobre a amizade e o
tempo. Em segunda instância, tem o que o tempo faz com a gente, não é só a
distancias. O Príncipe é uma investigação do que essa geração se virou, o
que nos tornamos. Essa geração que tocou o país durante oito anos e ainda
está tocando até hoje. O governo Lula, aliás, é exatamente igual ao
primeiro. Eu não vejo nenhuma diferença entre os caras, que eu retratei, e o
Aluízio Mercadante. Desculpe, mas eu não consigo ver nessa gente, uma chama
transformadora, é a mesma coisa. Então, O Príncipe é uma forma de exame no
que nos tornamos. Nos tornamos isso, pô. O cara que mercantiliza a cultura,
o outro que está no jornal, cínico, completamente apático, fazendo frases de
efeito, e por aí afora. E um que se recolhe, no que ele pode fazer, que é o
personagem do judeu, que trabalha no subterrâneo numa atitude imediatista de
fazer alguma coisa desesperada, sozinha e tal. O professor é um elo frágil
da história toda, é o que nos corta e que parte o delírio porque não vê
outra possibilidade, ele é o mais frágil de todos.

O que você atribui ao fato de O Príncipe não ter sido lançado em vídeo ou
DVD? Por que tua obra já não está indo para o DVD?

Eu não faço nem vídeo, nem DVD, e não distribuo nem vídeo, eu faço filmes.
Quando chega na hora da distribuição, não sou eu. Mas, eu acho, você sabe
muito bem disso, que o vídeo e o DVD estão ligados à carreira que o filme
faz. Se a carreira de um filme é problemática, é problemática a ida dele
para o vídeo e o DVD. E também que confesso a você que não me empenhei muito
nisso, porque acho que inclusive está em tempo. O Príncipe é um filme que
vai ser lançado por você. E também não me importo, acho que ele está sendo
muito bem lançado. A mim importa, sinceramente, espectadores atentos. Não me
importa 250 milhões de espectadores que estão lá catatônicos na frente do
filme. E que depois se pergunta qual é o filme e o cara não sabe nem o
título. Então para mim, não estou falando isso como consolo, pra lançar na
2001 é um nicho do filme, mas é serio, eu pretendo, pretendo fazer o DVD.











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