sexta-feira, 31 de julho de 2009

"Tela fria", matéria de capa da Ilustrada / Folha de S. Paulo

Criada para ser a principal rede pública do país, a TV Brasil sofre novas baixas em seus quadros; sem sinal aberto em vários Estados, não pode ser vista pela população

ANA PAULA SOUSA
DA REPORTAGEM LOCAL

30/07/2009

Há um ano e sete meses no ar, a TV Brasil tenta ajustar o seu foco. No período, a emissora ligada ao governo federal viu sua diretoria despedaçar-se, enfrentou acusações de má gestão e foi criticada pela falta de consistência da programação. Agora, outras duas baixas em seus quadros se anunciam.
À Folha, o presidente do conselho curador da TV, Luiz Gonzaga Belluzzo, disse que entregará o cargo. Nos últimos meses, 6 dos 15 conselheiros deixaram suas vagas.
Com um orçamento de R$ 350 milhões, a EBC (Empresa Brasil de Comunicação) congrega, além da TV Brasil, duas emissoras de TV e nove rádios. Nasceu com a ambição de tornar-se a rede pública nacional. Mas parece tropeçar em seus objetivos. "Tanto a sociedade quanto o governo têm baixa expectativa em relação à TV. É um espaço público pelo qual o público não se mobiliza", diz Mário Borgneth, um dos diretores afastados.
Borgneth representava, ao lado de Orlando Senna e Leopoldo Nunes, o projeto acalentando pelo MinC (Ministério da Cultura). Com a saída dos três, o MinC foi, na prática, afastado da EBC, controlada pela Secom (Secretaria de Comunicação), do ministro Franklin Martins. "A TV é vinculada à secretaria que maneja a informação do governo. O ideal seria que não tivesse esse perfil estatal, que fosse, por exemplo, uma fundação. Em outros países, se ligadas ao governo, as TVs públicas tendem a estar ligadas aos ministérios da Cultura ou da Educação", diz Senna.



Ala "cultural" perde espaço na rede pública

'Afastamento dos diretores ligados ao MinC é resultado do cabo de guerra político que está na origem da TV Brasil'

Financiamento da emissora está totalmente ligado à Secom, comandada pelo ministro Franklin Martins; conselho é indicado por Lula


Maio de 2007. Cenário: hotel Nacional, em Brasília. Nessa ocasião, os ministros Gilberto Gil (Cultura) Fernando Hadad, (Educação), e Franklin Martins (Secretaria de Comunicação), serviram de esteio à decisão presidencial de criar a TV Brasil. Foi sob os aplausos de entidades ligadas à democratização dos meios de comunicação que, ali, durante o Fórum das TVs Públicas, assinou-se a Carta de Brasília, definidora do prumo da rede pública.

Corta. Julho de 2009. Sede da EBC (Empresa Brasil de Comunicação), também em Brasília. Dos três ministérios, restou, de fato, um. Dos primeiros líderes do fórum, não sobrou ninguém. Das determinações assinaladas no documento, poucas encontraram lugar na EBC real.
"A carta de Brasília apontava para a criação de um sistema público", diz Bia Barbosa, do coletivo Intervozes, uma espécie de ONG que fiscaliza o projeto. "A EBC, hoje, é apenas uma emissora, não uma rede. Ela chega a quem tem TV por assinatura, mas o alcance pela TV aberta é mínimo."

Os dados de audiência não são divulgados pela emissora. O argumento é que muitos dos espectadores têm acesso aos programas por parabólica. Sabe-se, porém, que os índices de audiência estão na zona do "traço". De um lado, é natural que uma emissora voltada a conteúdos diferenciados não tenha espectadores à farta. De outro, a falta de acesso à TV Brasil reflete problemas de base que não foram resolvidos.

"Há um problema de capacitação de gestores, de falta de mão de obra especializada para operação de uma TV que adote novos paradigmas tecnológicos e novos modelos de negócio. E há, ainda, problemas de infraestrutura", diz o ex-diretor Mário Borgneth.


Arranjo desfeito

Para compreender a referência de Borgneth aos "gestores" é preciso voltar às origens da EBC. A TV pública veio à tona em 2002, quando o jornalista Eugênio Bucci assumiu a Radiobras. Um ano depois, o MinC tomou para si o tema e deu a largada ao processo que culminaria no fórum de 2007.

O assunto, que de início não ecoava pelos corredores do Palácio da Alvorada, tomou corpo após a reeleição. Muitos tentaram tomar as rédeas do processo, mas Lula passou o bastão ao ministro Franklin Martins.

Com o MinC, ficaram três diretorias ligadas à programação e à constituição da rede. A presidência da empresa foi entregue à jornalista Tereza Cruvinel. Mas o arranjo se desfez. Os diretores ligados ao MinC saíram -não sem algum alarde. Leopoldo Nunes, ao deixar o posto, acusou Cruvinel de "rasgar R$ 100 milhões". Ele se referia aos recursos que o MinC disponibilizaria para a TV e que não chegaram a ser usados.
"O perfil estatal dificulta muito o trabalho da produção, cria entraves ao dia a dia", diz Orlando Senna, ex-diretor geral, referindo às exigências burocráticas que acabam por travar a engrenagem.

Borgneth, por sua vez, diz que "houve uma clara obstrução na implantação dos novos modelos de produção preconizados pelo projeto inicial e um processo de concentração de poder na presidência". Não se cumpriram, por exemplo, as promessas de incorporação da produção independente e de conteúdos vindos da sociedade.

Outra crítica diz respeito ao conselho, indicado por Lula. "Tinha que ser escolhido pela sociedade", diz Jorge da Cunha da Lima, teórico de TVs públicas. "Só assim se garantiria o caráter público da empresa."



Frases

"Tivemos, nas reuniões de diretoria, discussões sobre a necessidade de exigir ou não recibo de táxi para os diretores, e grandes questões de programação ficavam sem resposta"
MÁRIO BORGNETH
ex-diretor da TV Brasil

"O conselho não se abre para os mecanismos de participação da sociedade e o financiamento está diretamente ligado ao governo. Esses dois aspectos fazem com que o caráter público da TV não esteja garantido"
BIA BARBOSA
do Coletivo Intervozes



TV pública é comum na Europa

A TV pública é, conceitualmente, aquela que não está amarrada nem ao governo nem ao mercado. Comum em países europeus, o modelo, no Brasil, desenvolveu-se à margem das TVs comerciais. Enquanto em países como Reino Unido, Alemanha, Itália e França o orçamento dos sistemas públicos fica entre 0,2% e 0,3% do PIB (Produto Interno Bruto), no Brasil esse índice fica em 0,0025%.

"No Brasil, a TV privada se afirmou como a TV do espetáculo. A TV pública deveria contribuir para a formação crítica do espectador, mas, como chegou atrasada, tem dificuldade de conquistar a audiência", diz Jorge da Cunha Lima. Ele cita, como exemplos de TVs públicas, as inglesas BBC e Chanel 4, a norte-americana PBS, "trucidada por Bush" e o canal franco-alemão Arte.

No Brasil, a estrutura das chamadas TVs educativas é um balaio de gatos jurídico. Há de tudo nesse universo: fundações, autarquias, órgãos ligados a universidades e organizações sociais. É nessa ambiente confuso que a EBC se move.

"A TV pública brasileira é um sistema de capitanias hereditárias ancoradas no poder político de cada Estado", diz Mário Borgneth.

Parte dessa herança pode ser vista, na TV Brasil, nos programas religiosos que, a despeito de proibidos numa rede pública, seguem no ar. "Essa é uma das principais queixas dos espectadores", diz o ouvidor Laurindo Leal Filho. "Uma TV pública deveria ser laica."



Cruvinel diz que não quer "colegiado político"

Indicada para a presidência da TV Brasil por Luiz Inácio Lula da Silva, Tereza Cruvinel tem fama de linha-dura. E também de temperamental. Procurada pela Folha, a jornalista preferiu conceder entrevista por e-mail. Disse estar envolvida com o processo de seleção de projetos da produção independente para a emissora.
Cruvinel faz questão de afirmar, em primeiro lugar, que recebeu uma estrutura "tecnologicamente sucateada e, do ponto de vista humano, desestimulada." Além disso, tinha de incorporar as estruturas da Radiobras e da TVE antes de ser colocada em funcionamento.

"Apesar de tudo isso, fizemos uma reforma organizacional que a tornou mais adequada e ágil, implantamos o canal de São Paulo, licitamos mais de R$ 100 milhões em equipamentos digitais, implantamos os telejornais e demos início à renovação da programação."

Sobre a pouca atenção dada à produção independente, ela diz que a participação do setor na grade já supera os 5% previstos em lei e que, a depender da resposta do setor, pode chegar a 40%. À pergunta sobre o afastamento da "turma do MinC", Cruvinel diz que "a diretoria-executiva da EBC não deve ser um colegiado político, mas administrativo", e reforça que a parceria continua, seja por meio de programas, seja pela presença do ministro Juca Ferreira no conselho da EBC.

Cruvinel, na entrevista, defende o papel de uma emissora pública e volta a defender-se das críticas de que, no alto escalão, a TV Brasil está ocupada por ex-funcionários da Globo. Além de Cruvinel, trabalharam na empresa da família Marinho a diretora de jornalismo, Helena Chagas, e o novo diretor de produção, Roberto Faustino.

"Acho uma bobagem. As Organizações Globo são uma grande escola de televisão e de jornalismo. A TV Brasil só tem a ganhar com a experiência ali adquirida por qualquer profissional ou diretor."



Conselho inoperante

Informado de que muitos dos envolvidos no projeto criticam seu distanciamento em relação à EBC, o presidente do conselho, Luiz Gonzaga Belluzzo, anunciou que quer deixar o posto. "Já fiz o trabalho que deveria ter feito. O período de implantação foi duro e não tenho vocação para várias presidências", diz Belluzzo, que é também presidente do Palmeiras. "Vou conversar com o presidente Lula para entregar o cargo." Mais uma baixa a caminho.

Belluzzo aproveitou a conversa para defender que a saída dos diretores ligados ao MinC tem a ver com questões funcionais, e não políticas. "Estão tentando transformar problemas privados em questões estratégicas. O problema é que, como diz Marx, a burocracia se julga a alma da sociedade".

Belluzzo reitera que não é papel do conselho interferir nas decisões da presidência, mas sim garantir isenção jornalística e qualidade. "Se houver acusações de parcialidade políticas, vamos verificar."

Cruvinel diz, por sua vez, que o conselho tem, sim, funcionado e garantido a independência da EBC em relação ao governo. (APS)


Fonte: http://www1.folha.uol.com.br