sexta-feira, 16 de julho de 2004

Futuro do cinema é digital


Ricardo Calil

14.07.2004 | Se existe uma pessoa capaz de prever o futuro do cinema, esse alguém é Walter Murch. Como editor de som e imagem de alguns dos mais importantes filmes das últimas décadas – “Poderoso Chefão 2”, “Apocalypse Now”, “O Paciente Inglês” e a versão reeditada de “A Marca da Maldade”, entre outros –, ele esteve à frente de alguns dos principais avanços tecnológicos do cinema recente.

Por seu trabalho em “O Paciente Inglês”, Murch foi a primeira pessoa a ganhar um Oscar para um filme editado no computador e também o primeiro a acumular as estatuetas de edição de som e imagem. Ele criou o termo “sound designer” (desenhista de som) para dar conta da complexidade de seu trabalho em “Apocalypse Now”, que também rendeu lhe um Oscar e se tornou referência para o cinema americano. Em seu filme mais recente, Murch novamente assombrou Hollywood ao trocar o sistema digital Avid pelo software Final Cut Pro, um programa de edição barato e popular, para montar o épico “Cold Mountain”, que custou US$ 80 milhões.

Na entrevista a seguir, dada por telefone de Londres, Murch revela algumas das surpreendentes previsões de sua bola de cristal. Para o editor, o filme tal como o conhecemos hoje (a película de celulóide usada para registrar e projetar imagens a 24 quadros por segundo) está com os dias contados. “O cinema será totalmente digital em cinco anos. No máximo, dez”, garante Murch. Aos 61 anos de idade, o montador nova-iorquino vê essas e outras mudanças com grande otimismo e sem qualquer vestígio de nostalgia.

Pouco conhecido do grande público, Murch é um herói para os profissionais de cinema. Fernando Meirelles, o diretor de “Cidade de Deus”, cogitou a hipótese de convidá-lo para montar seu novo filme, “The Constant Gardener”, mas acabou desistindo da idéia. “Pensei que talvez fosse difícil bater bola com alguém tão mais experiente. Como ir jogar um 21 tendo o Michael Jordan no mesmo time”, escreveu o cineasta no seu blog sobre as filmagens. Murch retribui os elogios: “Cidade de Deus é fantástico. Fiquei impressionado com a energia e a estrutura da montagem.”

Além de ser um mestre da edição de som e imagem, Murch já escreveu e dirigiu um filme (o subestimado “O Mundo Fantástico de Oz”, de 1985) e se destaca como pensador do cinema. É esse último talento que ele exerce no livro “Num Piscar de Olhos” (Jorge Zahar Editor, 152 págs., R$ 26,00), que acaba de ser lançado no Brasil e é considerado leitura obrigatória para as pessoas interessadas na arte da montagem cinematográfica.

“Num Piscar de Olhos” foi o livro que Daniel Rezende, montador de “Cidade de Deus”, leu para aprender mais sobre edição. Um ano depois da leitura, curiosamente, ele disputava o Oscar com Murch (“Cidade de Deus” e “Cold Mountain” foram derrotados pelo terceiro volume de “Senhor dos Anéis”).

Na apresentação do livro, Francis Ford Coppola (que teve Murch a seu lado em vários filmes e na fundação da lendária produtora American Zoetrope) escreve: “Nada é tão fascinante quanto passar horas ouvindo as teorias de Walter sobre a vida e o cinema, além das inúmeras partículas de sabedoria que ele deixa pelo caminho, como as migalhas de pão de João e Maria - orientadoras e nutritivas”. A seguir, Murch distribui algumas dessas partículas de sabedoria aos leitores de NoMínimo:

Neste ano, o senhor concorreu ao Oscar com “Cold Mountain” contra “Cidade de Deus” na categoria de edição. O que achou da montagem do filme brasileiro?

Acho o filme fantástico. Assisti várias vezes. E gostei muito de conhecer o (Daniel) Rezende na época do Oscar. É um filme muito complexo, com uma ação que percorre várias décadas e envolve dezenas de personagens. A montagem conseguiu cumprir a difícil tarefa de deixar essa história clara para o espectador. Ela tem um ótimo equilíbrio entre energia e estrutura.

No Brasil, o filme foi criticado por supostamente adotar uma estética publicitária. O senhor concorda?

Não, de forma alguma. Quando pessoas vindas da publicidade decidem fazer cinema, muitas vezes elas não têm o sentido de estrutura de um filme. Esse não foi o caso com o (Fernando) Meirelles e o Rezende. Eles souberam fazer essa transição muito bem.

Por que a montagem dos filmes parece ser cada vez mais frenética?

Não acho que os filmes estejam ficando necessariamente mais rápidos. O que mudou foi o foco da velocidade, do verbal para o visual. Em muitos filmes americanos dos anos 30, os diálogos são tão rápidos que as pessoas hoje teriam dificuldade de acompanhar. Seria como cantar um rap para as pessoas daquela época. Hoje, a velocidade é dada pela montagem, com a alternância de imagens substituindo a de palavras.

O senhor não teme que os filmes fiquem cada vez mais parecidos com videoclipes e propagandas de TV?

Não. Se os filmes ficarem rápidos demais, eles não conseguirão estabelecer uma comunicação efetiva com o público e, portanto, irão fracassar. A montagem de imagens é uma arte jovem, com pouco mais de cem anos. Outras artes estão aí há milhares de anos. Ainda temos que explorar todas as possibilidades da montagem.

Em quanto tempo o senhor acredita que a película cinematográfica irá acabar?

Cinco anos. No máximo, dez. A tecnologia de projeção digital já existe. Agora virou uma questão de saber quem vai pagar por ela, se os estúdios ou os exibidores. Quando eles decidirem rachar a conta, o processo não terá mais volta. Os laboratórios começarão a perder trabalho e cobrar mais pelas cópias em película, até que os custos tornem o método antigo impraticável.

O senhor parece ver essas mudanças sem qualquer nostalgia...

As mudanças são positivas. Não tenho nostalgia pelo cheiro de celulóide. Não dá para voltar atrás. Então, é melhor ver o lado bom das coisas.

No livro, o senhor enumera uma série de vantagens da edição digital em relação à montagem tradicional. Existe alguma desvantagem?

A única coisa que me parece uma desvantagem é que, em algumas mesas de edição antigas, você tinha que ver muito material até chegar ao ponto que queria. E muitas vezes encontrava alguma coisa mais interessante no caminho. Com a edição digital, você vai direto à cena que busca, então pode perder coisas interessantes que o acaso lhe oferece. O que você procura nem sempre é aquilo de que você precisa.

Na montagem tradicional, o corte era um trabalho “braçal”, feito diretamente em uma cópia do negativo. No computador, o processo é mais simples, já que as imagens manipuladas são virtuais. Essa facilidade não faz com que os cortes sejam menos refletidos hoje?

Concordo até certo ponto. Quando você corta o filme fisicamente, você tende a pensar mais. Com o computador, ficou muito simples voltar atrás. É por isso que na escola me obrigavam a escrever redações com caneta. Lápis é fácil de apagar. Editar uma cena complexa no computador é como tocar piano: a seqüência de teclas vem espontaneamente, uma atrás da outra. Por outro lado, os grandes pianistas ensaiam muito antes do concerto. Portanto, já refletiram previamente. No meu caso, eu tiro fotos de cada cena e as coloco na parede antes de começar a editar. Se me preparo bem, sinto que posso pular no abismo e cair em pé.

No livro, o senhor comenta que existe o risco de que as novas tecnologias transformem o cinema em um processo individual, perdendo assim seu sentido de arte coletiva, já que uma única pessoa poderá dominar várias etapas do processo. Quais os problemas que isso traria?

Filmes são baseados na cooperação. É da multiplicidade de emoções envolvidas que nasce o brilhantismo de um filme. Se ele se baseia na emoção de uma só pessoa, pode perder a capacidade de comunicação. Isso aconteceu alguns séculos atrás com as artes plásticas. Antigamente, muitas pessoas tinham que trabalhar em um afresco, sob a supervisão de um artista. Com o surgimento da pintura a óleo, o artista começou a trabalhar sozinho, e o quadro se tornou o resultado de uma única sensibilidade. Como resultado disso, as pinturas ficaram mais herméticas com o passar do tempo. Mas não tenho certeza de que isso irá acontecer com o cinema. Se você olha para os créditos de filmes como “Homem Aranha 2” ou mesmo de “Cold Mountain”, verá que o número de pessoas envolvidas na produção só aumentou, mesmo com o avanço das tecnologias.

Qual será a próxima grande revolução tecnológica no cinema?

Terminar todo o filme em um mesmo computador, incluindo aí a edição de imagem e de som, a correção de luz, a mixagem do som, os efeitos especiais etc. Em pouco tempo, o que sair da mesa de edição vai ser o filme pronto, para ser mandado direto para os cinemas. Essa é uma revolução que já está em curso. É o futuro que nós estamos vislumbrando hoje.

Quais filmes foram importantes na sua formação?

Principalmente os filmes europeus e japoneses dos anos 50 e 60: Kurosawa, Bergman, Godard, Truffaut, Fellini, Lean. Eu tive a sorte de ser um estudante de história da arte em Paris em 1963, quando a Nouvelle Vague era grande.

O senhor diria que trouxe algo da descontinuidade da montagem dessa época para o cinema americano?

Acho que sim. Pelo menos em “A Conversação” (1974), do Coppola. Os takes eram muito grandes. Então, eu cortava direto de um ponto interessante ao outro, mantendo os “pulos” na montagem, no estilo do Godard. Quando começamos a fazer cinema, nossa vontade era trazer uma sensibilidade mais pessoal, mais européia em um certo sentido, para os filmes americanos. Mas isso não valia para todos os filmes. Em “O Poderoso Chefão 2” (1974), que foi feito logo depois de “A Conversação”, a montagem era a clássica da Hollywood dos anos 40.

O senhor prefere ter o diretor a seu lado na montagem ou prefere ficar sozinho?

Eu sou perfeitamente adaptável, mas o ideal é ficar sozinho. O Coppola vê o material de vez em quando, dá sugestões, mas fica longos tempos sem aparecer. Já o (Anthony) Minghella (de “O Paciente Inglês”) está sempre ao meu lado. Eu sou mais crítico comigo mesmo quando estou sozinho. Quando o diretor está ali do lado, ele costuma achar minhas sugestões boas, então acabo seguindo em frente. Se estou sozinho, fico experimentando mais e tentando descobrir alguma coisa melhor.

Em 1988, o senhor remontou “A Marca da Maldade” (1958) de acordo com as notas deixadas por Orson Welles. O fato de não poder dialogar com o diretor tornou o trabalho mais difícil?

Não, por que as notas que Welles deixou eram fantásticas. Muito psicológicas. Não diziam exatamente o que fazer, mas davam a exata noção do que ele tinha em mente. Todas, literalmente todas, notas funcionavam, mesmo 40 anos depois. Se um diretor me desse hoje algumas notas para orientar a edição, metade não funcionaria.

O senhor também fez a nova edição ampliada do “Apocalyse Now”. O senhor considera essa versão melhor que a original?

Acho que a verdade fica no meio das duas. São filmes diferentes. A primeira versão tem mais energia. A segunda é mais complexa, mais profunda.

No livro, o senhor escreve que a montagem da versão original foi seu mais difícil trabalho até hoje. Por quê?

Sim. Foi a mais longa pós-produção em que trabalhei. Levou um ano para montar a imagem e mais um ano para montar o som. O maior problema foi a quantidade de material. A equipe de quatro editores recebeu 1,25 milhão de pés de filme, cinco vezes mais que o normal. Levou um bom tempo para olhar o material e decidirmos para que lado ir. Chegamos a um primeiro corte de cinco horas e tivemos de reduzir para duas horas e meia.

O senhor assombrou Hollywood quando decidiu montar o “Cold Mountain”, um filme que custou US$ 80 milhões, com o Final Cut Pro, um software de edição barato e popular. Por que tomou essa decisão?

O sistema pode ser barato, mas nem por isso é menos sofisticado. Ele me deu maior flexibilidade e poder de criação. Pudemos trabalhar em quatro computadores Power Mac G4 ao mesmo tempo, pelo mesmo preço de uma única estação digital de Avid. É como fazer um grande jantar com um fogão de quatro bocas. A comida pode ficar boa se você usar uma ou duas, mas vai ser mais rápido e prático se usar todas ao mesmo tempo.

O senhor é apicultor nas horas vagas. Existe alguma relação entre essa atividade e a de montador de cinema? Ou é apenas uma maneira de relaxar?

Eu faço uma comparação no livro entre as duas coisas. Se você move uma colméia três quilômetros, as abelhas irão reencontrá-la facilmente. Se move apenas dois metros, elas ficarão desorientadas. O mesmo se dá no cinema. Se você corta de um plano aberto para um close, ninguém vai estranhar. Mas se corta de um plano aberto para outro apenas um pouco mais fechado, as pessoas perceberão um salto e ficarão confusas. Mas acho que essa é a única semelhança. O que eu acho mais fascinante nas abelhas é que elas têm uma inteligência grupal. A cabeça de cada uma é pouco maior do que a de um alfinete. Mas, juntas, elas são muito espertas.

Essa não seria outra semelhança com o cinema?

Não tinha pensado nisso, mas é verdade. Os filmes têm de ser mais inteligentes do que as pessoas que os fizeram.


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