terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

"DISTÚRBIOS DE APRENDIZAGEM": UMA ROSA COM OUTRO NOME


por Jan Hunt, Psicóloga Diretora do "The Natural Child Project"

Imagine por um instante que você está visitando um viveiro de plantas...

Você percebe uma agitação lá fora e vai investigar. Você encontra um jovem
assistente lutando contra uma roseira. Ele está tentado forçar as pétalas
da rosa a se abrirem, e resmunga insatisfeito. Você lhe pergunta o quê
está fazendo e ele explica: "meu chefe quer que todas essas rosas
floresçam essa semana, então na semana passada eu cortei todas as precoces
e hoje estou abrindo as atrasadas". Você protesta dizendo que cada rosa
floresce a seu tempo, é absurdo tentar retardar ou apressar isso. Não
importa quando a rosa vai desabrochar - uma rosa sempre desabrocha no
momento mais oportuno para ela. Você olha novamente a rosa e percebe que
ela está murchando, mas quando você o alerta, ele responde: "Ah, isso é
mau, ela tem disdesabrochamento congênito. Vamos ter que chamar um
especialista". Você diz: "Não, não! Foi você quem fez a rosa murchar! Você
só precisaria satisfazer as exigências de água e luz da planta e deixar o
resto por conta da natureza!" Você mal consegue acreditar no que está
acontecendo. Por quê o chefe dele é tão mal informado e tem expectativas
tão irreais em relação às rosas?


Essa cena nunca teria se passado em um viveiro, é claro, mas acontece
todos os dias em nossas escolas. Professores pressionados por seus chefes
seguem calendários oficiais que exigem que todas as crianças aprendam no
mesmo ritmo e do mesmo jeito. No entanto as crianças não diferem das rosas
em seu desenvolvimento: elas nascem com a capacidade e o desejo de
aprender, e aprendem em ritmos diferentes e de modos diferentes. Se formos
capazes de satisfazer suas necessidades, proporcionar um ambiente seguro e
propício e evitar nos intrometer com dúvidas, ansiedades e calendários
arbitrários, aí então - como as rosas - as crianças irão desabrochar cada
uma a seu tempo.


Meu coração gela quando penso nas crianças classificadas como 'ADHD'
(sigla norte-americana para 'distúrbio de hiperatividade e falta de
atenção'), o mais novo tipo de "distúrbio de aprendizagem". Muitos
educadores e pesquisadores acreditam que as crianças e suas famílias
tenham sido cruelmente enganadas por essa classificação. O Dr. Thomas
Armstrong, que já foi especialista em dificuldades de aprendizagem, mudou
de profissão quando começou a ver "como essa noção de distúrbios de
aprendizagem estava prejudicando todas as nossas crianças, colocando a
culpa da dificuldade de aprender em misteriosas deficiências neurológicas,
em vez de apontar para as tão necessárias reformas em nosso sistema
educacional". O Dr. Armstrong voltou-se então para o conceito de
diferenças de aprendizagem e escreveu "In Their Way" ("Do modo deles"), um
guia prático e fascinante para os sete "estilos pessoais de aprendizagem"
inicialmente propostos por Howard Gardner, psicólogo da Universidade de Harvard. O Dr. Armstrong nos instiga a abandonar rótulos convenientes mas nocivos tais como "dislexia" e nos ater ao problema real do "disensino". Ele adverte que "nossas
escolas estão desvalorizando milhões de crianças ao taxá-las de
insuficientes quando na realidade elas estão sendo incapacitadas por
métodos de ensino ruins". Como Armstrong explica, "as crianças são
sobrecarregadas com diagnósticos tais como dislexia, disgrafia,
discalculia e assim por diante, dando a impressão de que sofrem de
doenças muito raras e exóticas. Embora o termo dislexia seja apenas uma
expressão latina para 'dificuldade com palavras', centenas de testes e
programas se propõem a identificar e tratar tais 'disfunções
neurológicas'. Mas os médicos ainda não conseguiram determinar qualquer
tipo de lesão cerebral detectável na maior parte das crianças com esses
assim chamados sintomas. Parece evidente para mim, depois de quinze anos de pesquisa e prática no campo da educação,que nossas escolas são as principais culpadas pelo fracasso e pelo tédio enfrentado por milhões de crianças..."


As classificações de distúrbios de aprendizado seriam "as novas roupas do
imperador" das escolas? Os filósofos têm um recurso interessante chamado
"Navalha de Occam", um expediente prático para liqüidar com teorias
absurdas: "para resolver um problema, deve-se escolher a teoria mais
simples que explique os fatos". Quais são os fatos? É fato que muitos
escolares, principalmente do sexo masculino, têm dificuldades de
aprendizagem. Mas também é fato que existem centenas de milhares de
crianças no mundo, meninos e meninas, entre os quais esse defeito
"genético" está ausente: são as crianças escolarizadas em casa. Nesse
grupo, praticamente não existem dificuldades de aprendizagem, exceto nas
crianças que estão ha pouco tempo na escola.


Se os "distúrbios de aprendizagem" estão presentes apenas no ambiente
escolar e ausentes em outros lugares, o problema deve estar no ambiente de
aprendizado das escolas e não em algum "distúrbio neurológico" misterioso
e não-detectável das crianças, ou estariam igualmente presentes nas
crianças escolarizadas em casa. Afinal não é segredo que as escolas não
estão conseguindo cumprir sua tarefa: em muitas regiões, os níveis de
alfabetização na verdade caíram e não chegaram a atingir os níveis prévios
à existência de escolas públicas (nos Estados Unidos). Quando John Gatto,
eleito Professor do Ano do Estado de Nova York, chama a escolarização
obrigatória de "sentença de doze anos de prisão", percebemos que algo está
muito errado e que o erro não é das crianças.


Será que as classificações de "hiperatividade", "fobia escolar" e
"dificuldade de aprendizagem" não são uma cortina de fumaça para a
incapacidade da escola de entender e aceitar o verdadeiro processo de
aprendizagem? Uma especialista do porte de Mary Poplin, ex-editora de uma
revista sobre distúrbios de aprendizagem ('Learning Disabilities
Quarterly'), concluiu recentemente que "apesar de toda a pesquisa
quantitativa... não há provas de que os distúrbios de aprendizagem possam
ser identificados objetivamente... as tentativas de se estabelecer
critérios objetivos para avaliar problemas humanos são uma ilusão que
serve para encobrir nossa incompetência pedagógica". O educador John Holt
relata em 'Teach Your Own' ('Ensine a Si Mesmo') que o presidente de uma
importante associação para tratamento de distúrbios de aprendizagem
admitiu que há "poucas provas para confirmar os diagnósticos de distúrbios
de aprendizagem". John Holt alerta os pais de crianças em idade escolar para serem "extremamente céticos em relação a qualquer coisa que as escolas e seus especialistas digam sobre a condição e as necessidades de seus filhos". Acima de tudo, eles devem compreender que é quase certo que a própria escola, com todas as suas fontes de tensão e ansiedade, esteja causando as dificuldades e que o
melhor tratamento provavelmente seja tirar o filho da escola de uma vez
por todas.


As famílias que fazem isso ficam aliviadas ao descobrir que seus filhos
recuperam o interesse que tinham pelo aprendizado quando eram mais novos.
Ao contrário dos professores escolares, que têm apenas uma visão parcial
de várias crianças a cada ano, os pais que ensinam em casa observam o
aprendizado de uma única criança ao longo de vários anos, aprendendo assim
a respeitar o estilo singular de aprendizado de cada filho, a confiar na
escala de horários individual da criança e a reconhecer que os erros são
um componente normal e passageiro do processo de aprendizado de qualquer
pessoa. ( Não há pressa, de qualquer forma: muitas crianças escolarizadas
em casa que começaram a ler aos 10 ou 12 anos saíram-se muito bem na
faculdade). Essa atitude de descontração dos pais que ensinam em casa
mantém intacto o valor próprio da criança, torna as classificações
insignificantes e permite que o aprendizado seja tão fácil quanto entre os
pré-escolares: crianças escolarizadas em casa costumam superar aquelas
que freqüentam a escola em termos de desempenho acadêmico, socialização,
confiança e auto-estima. John Gatto afirma que "em termos de capacidade
de pensar, as crianças escolarizadas em casa parecem estar de cinco a dez
anos adiante daquelas que freqüentam a escola".


Durante alguns anos John Holt desafiou várias escolas a "explicar a
diferença entre uma dificuldade de aprendizagem (que todos nós temos uma
vez ou outra) e um distúrbio de aprendizagem". Ele perguntou aos
professores como eles distinguem entre causas inerentes ao sistema nervoso
do aluno e fatores externos - o ambiente escolar, o modo de explicar do
professor, o professor em si ou o material didático. Ele relata: "nunca
recebi uma resposta coerente a essas perguntas... [ainda assim] essa
distinção é tão fundamental que não sei como podemos falar de modo
construtivo sobre os problemas de aprendizagem de uma criança sem ela".
Mas como os professores têm tanta certeza da existência tão disseminada de
distúrbios neurológicos? Talvez eles estejam apenas confundindo causa e
efeito: como John Holt observa, "os professores dizem que deve ser difícil
ler, ou não haveria tantas crianças com dificuldade de ler". John Holt
argumenta que "as crianças têm dificudlade de ler porquê partimos do pressuposto de que ler é difícil... com nossa preocupação, 'simplificação' e pedagogia, tudo o
que conseguimos é tornar a leitura cem vezes mais difícil para a criança
do que deveria ser... quando estamos nervosos ou com medo temos
dificuldade, ou ficamos mesmo impossibilitados, de pensar e até de
perceber... quando amedrontamos as crianças, bloqueamos totalmente seu
aprendizado".


De fato, algumas pesquisas mostram que as expectativas do professor sobre
a capacidade de aprendizado da criança influenciam muito o seu desempenho
acadêmico. Outras pesquisas mostram a relação entre a ansiedade da criança
e sua dificuldade de percepção - e ainda que o alívio da ansiedade (e o
tratamento de alergias alimentares, quando elas existem) reduz em muito a
incidência dessas dificuldades. Mas não precisamos que especialistas e
pesquisadores nos digam o quê está errado. Precisamos apenas ouvir as
próprias crianças, que estão há anos tentando expressar sua dor,
frustração, confusão e raiva. Quando as crianças se voltam para as drogas,
auto-mutilação e suicídio, é evidente que estão tentando nos comunicar
algo muito importante.


Será que as dificuldades de aprendizagem são mesmo uma reação
compreensível de crianças normais obrigadas a conformar-se às condições
anormais das salas de aula convencionais? Em outras palavras, será que as
escolas são incapazes de perceber a diferença entre simples relatos de
erros de aprendizagem passageiros, agravados pelo estresse, e uma
conclusão científica? Embora as supostas anomalias neurológidas nunca
tenham sido identificadas, não é difícil detectar condições anormais no
ambiente escolar: competitividade feroz, inatividade física
(particularmente difícil para os meninos), matérias fragmentadas que têm
pouca relação com os interesses e as experiências individuais da criança,
freqüentes avaliações e questionamento do progresso do aprendizado, falta
de tempo para o convívio familiar, pouca oportunidade de conhecer pessoas
de outras idades, falta de sossego para a privacidade e a reflexão, pouca
oportunidade de receber a atenção exclusiva dos professores, desencorajamento a
compartilhar idéias e trabalho com os colegas de classe (uma oportunidade
valiosa sendo desperdiçada), crianças frustradas caçoando das outras, o desencorajamento de atitudes de auto-valorização e acima de tudo a
indignidade de ser um incapaz, uma "não-pessoa", cujas necessidades
legítimas e as tentativas de expressar essas necessidades são abafadas
pela defensiva institucional. Todas essas dificuldades podem ser evitadas
com a escolarização domiciliar - desde que o governo permita autonomia
suficiente.


Classificações são incapacitantes, porque as crianças acreditam no que
lhes dizemos. Se tivermos que classificar algo, que seja o ambiente de
ensino e não o aluno: em vez de "criança hiperativa", vamos nos preocupar
com as escolas "restritivas de atividade"; em vez de alunos com "falta de
atenção", deveríamos pensar nas aulas com "falta de inspiração"; em vez de
"criança com fobia escolar" deveríamos usar palavras mais honestas como
"ansiosa" e "amedrontada", e tomar mais cuidado ao pesquisar o motivo da
ansiedade. Usando a Navalha de Occam, vamos procurar a teoria mais simples
que explique os fatos e não a mais complicada e obscura. Um ambiente
estressante, punitivo e ameaçador é mais do que suficiente para explicar
os problemas de aprendizagem. Não precisamos nos confundir com termos
técnicos, teorias sem comprovação científica e bodes expiatórios para
preservar uma instituição social que falhou com nossos filhos.


Como devemos agir então? Norman Henchey, professor da Universidade
MacGill, recomenda "repensar totalmente a escolarização compulsória".
Norman Henchey defende a volta à escolarização em casa e a "outras vias de
amadurecimento... programas de formação de aprendizes, serviços de ensino
formais e informais, servico público". Talvez assim possamos honrar o
estilo individual de aprendizado de cada criança e, como pede o Dr.
Armstrong, "dar às crianças a motivação de que necessitam para se sentirem
seres humanos competentes e bem-sucedidos". As crianças nasceram para
aprencer. Elas merecem ter um ambiente de ensino seguro e estimulante,
onde possam aprender em uma atmosfera de paciência, respeito, delicadeza e
confianca, sem ameaças, coerção ou cinismo. Como Einstein nos alertou
muitos anos atrás, "é um grave erro acreditar que o prazer de observar e
pesquisar possam ser incutidos pela coerção".



Toda criança é uma criança bem-dotada.

http://albanyfreeschool.com

--
Gabriela Gonçalves
http://ninhoslings.blogspot.com
http://www.arteraiz.com.br


Making it up as we go along: The story of the Albany Free School (Tradução livre para uso no curso Politeia)

http://curso.politeia.org.br/Bibliografia completa

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