terça-feira, 22 de junho de 2004

DIALOGISMO:

A LINGUAGEM VERBAL COMO EXERCÍCIO DO SOCIAL

Cláudia Lukianchuki
Doutora em Comunicação pela ECA-USP e
Professora de Língua Portuguesa e Comunicação do CEFET-SP

Com base nos referenciais teóricos da Análise do Discurso de orientação francesa e de Bakhtin, este artigo discute o conceito de Dialogismo, Dialogicidade e suas implicações, enfocando a linguagem verbal como exercício do social. Pensar dialeticamente a realidade social é ver, através da língua dada, a palavra dando-se num movimento contínuo. A palavra é a mediadora entre o social e o individual. Ao aprender a falar, o ser humano também aprende a pensar, na medida em que cada palavra é a revelação das experiências e valores de sua cultura. Desse ponto de vista, tem-se que o verbal influencia nosso modo de percepção da realidade. Portanto, cabe a cada um assumir a palavra como manutenção dos valores dados ou como intervenção no mundo.
"Tudo se reduz ao diálogo, à contraposição dialógica enquanto centro. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina, nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida".(Mikhail Bakhtin)
O pensamento de Bakhtin revelado em suas obras, apesar de plural, tem uma unidade garantida pela centralidade da linguagem, cujo método de análise é a dialética. Dialogismo é o conceito que permeia toda a sua obra. É o princípio constitutivo da linguagem, o que quer dizer que toda a vida da linguagem, em qualquer campo, está impregnada de relações dialógicas. A concepção dialógica contém a idéia de relatividade da autoria individual e conseqüentemente o destaque do caráter coletivo, social da produção de idéias e textos. O próprio humano é um intertexto, não existe isolado, sua experiência de vida se tece, entrecruza-se e interpenetra com o outro. Pensar em relação dialógica é remeter a um outro princípio - a não autonomia do discurso. As palavras de um falante estão sempre e inevitavelmente atravessadas pelas palavras do outro: o discurso elaborado pelo falante se constitui também do discurso do outro que o atravessa, condicionando o discurso do eu. Em linguagem bakhtiniana, a noção do eu nunca é individual, mas social. Nos seus escritos, Bakhtin aborda os processos de formação do eu através de três categorias: o eu-para-mim, o eu-para-os-outros, o outro-para-mim. Da formulação dessa tríade, pode-se entrever sua inquietude frente a algumas questões: Como o eu estabelece sua relação com o mundo?; Existe uma oposição entre o sujeito e o objeto? "Para ele, não há um mundo dado ao qual o sujeito possa se opor. É o próprio mundo externo que se torna determinado e concreto para o sujeito que com ele se relaciona." (Freitas, 1996, p.125-6)

LINGUAGEM E PENSAMENTO
A consciência individual é, portanto, um fato social e ideológico. Dito de outra maneira, a realidade da consciência é a linguagem e são os fatores sociais que determinam o conteúdo da consciência - do conjunto dos discursos que atravessam o indivíduo ao longo de sua vida, é que se forma a consciência. O mundo que se revela ao ser humano se dá pelos discursos que ele assimila, formando seu repertório de vida. Pelo fato de a consciência ser determinada socialmente não se pode inferir que o ser humano seja meramente reprodutivo, o que se ressalta é, portanto, a criatividade do sujeito humano: é influenciado pelo meio, mas se volta sobre ele para transformá-lo. Duas vezes nasce o homem: fisicamente (o que não o faz inserir na história) e socialmente determinado pelas condições sociais e econômicas. Posto isso, não se pode sustentar a idéia - tão propalada pelo idealismo e pelo positivismo psicologista - de que a ideologia deriva da consciência. Sob a forma de signos é que a atividade mental é expressa exterior e internamente para o próprio indivíduo. Sem os signos a atividade interior não existe. A palavra não é só meio de comunicação, mas também conteúdo da própria atividade psíquica.

Nessa mesma linha, Vygotski, psicólogo russo, tentou superar, dentro do materialismo histórico dialético, a crise no campo da psicologia, verificada no conflito entre as concepções idealista e mecanicista, apresentando propostas teóricas inovadoras voltadas para temas que tratavam da inter-relação pensamento e linguagem rumo a uma teoria geral das suas raízes genéticas, natureza do processo de desenvolvimento da criança e o papel da instrução no desenvolvimento. A idéia revolucionária de que a consciência humana é determinada historicamente é o núcleo mobilizador de suas pesquisas, levando-o a colocar como centro de suas preocupações as questões da linguagem não como um sistema lingüístico de estrutura abstrata, mas em seu aspecto psicológico. Seu interesse residia em estudar a linguagem como constituidora do sujeito com o enfoque na relação pensamento e linguagem, chave para a compreensão da natureza da consciência humana. Partindo do pressuposto de que pensamento e linguagem têm raízes diferentes, constatou que o pensamento e a palavra, apesar de não serem ligados por um elo primário, não podem ser considerados como dois processos independentes. O autor contrapõe-se às concepções clássicas das antigas escolas de psicologia, dando um salto qualitativo com as suas investigações, ao perceber a conexão entre pensamento e linguagem como originária do desenvolvimento, evoluindo ao longo dele, num processo dinâmico. O caminho encontrado para uma nova abordagem da questão foi a mudança do método de análise - da análise em elementos das investigações anteriores (analiticamente separado em seus componentes) para a análise em unidades - e assim pôde concluir que a unidade do pensamento verbal está no significado das palavras.

Para compreender o pensamento verbal, Vygotski identifica que essa unidade é o significado das palavras, que é o seu aspecto intrínseco. Para ele, apesar de a natureza do significado não ser clara ainda, sua certeza é a de que, no significado da palavra, o pensamento e a fala se unem em pensamento verbal. No significado, também, estão as respostas às questões sobre a relação entre pensamento e fala. Embora o significado de uma palavra represente "um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem", suas pesquisas revelaram que o significado, critério da palavra e componente indispensável, é um fenômeno do pensamento e não da fala, uma vez que são generalizações ou conceitos, ou seja, atos do pensamento. No entanto, "O significado das palavras é um fenômeno de pensamento apenas na medida em que o pensamento ganha corpo por meio da fala, e só é um fenômeno da fala na medida em que esta é ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele. É um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa - uma união da palavra e do pensamento".(Vygotski, 1989, p.04)

Se o significado da palavra é simultaneamente pensamento e fala, então é nele que está a unidade do pensamento verbal. Portanto, é a análise semântica o método a seguir na exploração da natureza verbal. Dessas investigações chegou-se a um outro resultado igualmente importante: o significado das palavras evolui. São formações dinâmicas e não estáticas: sua modificação percebe-se com o desenvolvimento da criança e também com as várias formas pelas quais o pensamento funciona.

OS DISCURSOS SOCIAIS
Retomando a questão do dialogismo, e, ainda com relação à palavra diálogo, além do seu sentido estrito - o ato de fala entre duas ou mais pessoas -, pode-se tomá-la também em seu sentido amplo, a saber, qualquer tipo de comunicação verbal, oral ou escrita, exterior ou interior, manifestada ou não. O livro, por exemplo, é um ato de fala impresso. "O discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio etc." (Bakhtin, 1978, p.123). Tudo está em constante comunicação. À idéia de diálogo agrega-se um outro elemento que não se refere apenas à fala em voz alta de duas pessoas, mas a um discurso interior, do qual se emanam as várias e inesgotáveis enunciações, que são determinadas pela situação de sua enunciação e pelo seu auditório. "A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expressão exterior definida, que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação." (Bakhtin, 1978, p.125). A toda essa questão está relacionada a formação de repertórios, que, no dizer de Bakhtin, são formas de vida em comum relativamente regularizadas, reforçadas pelo uso e pela circunstância.

Dessa maneira, as formas estereotipadas no discurso da vida cotidiana respondem por um discurso social que as consolida, ou seja, possuem um auditório organizado que mantém a sua permanência, refletindo, assim, ideologicamente a composição social do grupo, evidência da afirmação de Bakhtin ao dizer que "a palavra é o fenômeno ideológico por excelência" ou "todo signo é ideológico". Por essa razão, é que, mesmo em uma aparente simples anedota que se conta sobre o negro, o judeu, o nordestino, a mulher etc., os preconceitos que se afloram nada mais são do que exercício constante dos elementos culturais desse grupo social. O enunciatário, no entanto, pode oferecer obstáculos à sua realização/manutenção provocando rupturas que vão infiltrando sensíveis mudanças iniciais, mas que podem ganhar corpo. Daí o entendimento de que todos são sujeitos da enunciação - enunciador e enunciatário - porque o caráter interativo nada mais é do que a possibilidade de transformação, seja pelo enunciador,
seja pelo enunciatário, passando a refletir e refratar a realidade dada. É a idéia da palavra em movimento, o poder da palavra. Através dela, os sujeitos são postos em ação para reproduzir ou mudar o social.

Essas reflexões remetem aos estudos semânticos de Pêcheux (quando diz que, ao passar de uma formação discursiva à outra, as palavras mudam de sentido) num diálogo com a formulação (a palavra é um signo neutro) de Bakhtin. Um exemplo disso é a palavra greve. Ao ser usada pelo dono da empresa ou pela autoridade governamental, adquire conotação diferente, especialmente disfórica, isto é negativa, daquela usada pelo funcionário ou pela população, que, neste caso, em geral, assume valor eufórico, ou seja, positivo. (Fiorin,1988,p.21-2). Os meios de comunicação, especialmente a televisão, são a evidência desses significados: quem faz greve geralmente é visto como baderneiro, dificilmente como alguém que está reivindicando seus direitos, garantidos, inclusive, constitucionalmente. A palavra em circulação é a palavra que está prenhe de significados de tal forma que, ao falar, os sentidos são mobilizados de maneira a mostrar que o sujeito é responsável por aquilo que diz, fazendo assim transparecer o seu papel social, isto é, as formas de suas relações sociais. Em outras palavras, evidenciam-se as posições de sujeito - de que fala Pêcheux - ou lugares determinados na estrutura de uma formação social marcados por propriedades diferenciais determináveis - as formações imaginárias.

OS PAPÉIS SOCIAIS

Sobre os papéis sociais, Agnes Heller explicita que, apesar de as funções de tipo "papel" serem condicionadas pelo conjunto da sociedade, o ser humano é mais do que o seu papel ou conjunto dos seus papéis, porque eles jamais esgotam o comportamento humano em sua totalidade: "Mesmo nos contextos mais manipulados, produz-se constantemente a 'recusa do papel'. Em todos esses contextos, há excêntricos, rebeldes e revolucionários. Até mesmo os contextos mais manipulados estão repletos de homens que vivem em 'incógnito de oposição'." (Heller, 1985, p.106)

O comportamento do indivíduo com relação a seu papel ou papéis sociais pode variar muito, podendo-se observar atitudes fundamentais que o definem: a "recusa do papel" verificada nos rebeldes ou revolucionários em que o indivíduo preserva a sua personalidade; o "incógnito de oposição" em que o indivíduo se contrapõe ao mundo em que vive, ocorrendo um distanciamento entre a sua personalidade e o papel que representa, o que o faz sofrer: não é nem conformista, tampouco revolucionário; o "incógnito dissimulado" em que, como o anterior, o indivíduo não se identifica com o seu papel, mas é capaz de penetrar nele e em sua função aceitando as regras de jogo dominantes: a dissimulação traduz uma personalidade perigosa, porque não se deixa conhecer por ninguém; e, finalmente, a "identificação" em que se observa a plena identificação com o papel, forma direta de revelar-se a alienação, ocorrendo a perda da continuidade do caráter e dissolução da personalidade. Por todas essas razões, o papel
social é também uma forma de compreender o indivíduo, que deve ser observado além de sua aparência.

Por todas essas considerações, pode-se perceber por que dialogismo é vital para a compreensão dos estudos de Bakhtin e das questões referentes à linguagem como constitutiva da experiência humana e seu papel ativo no pensamento e no conhecimento. Do ponto de vista comunicacional a importância desse conceito reside, inclusive, no fato de ratificar o conceito de comunicação como interação verbal e não verbal e não como apenas como transmissão de informação. A contribuição à complexidade desse conceito também se verifica por implicar outros: interação verbal, intertextualidade e polifonia. Esses termos parecem designar um mesmo fenômeno com pequenas variações entre si. São estas especificidades que vão estabelecer as diferenças entre eles, aproximando-os ou distanciando-os em graus diferenciados. O mais importante é perceber que todos eles, independentemente de suas particularidades, rompem com a arrogância e a onipotência do discurso monológico. O ser social nasce com o exercício de sua linguagem.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem.Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, colaboração de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 5a ed. São Paulo: Hucitec, 1978.BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: EDUSP, 1994. (Ensaios de Cultura, 7)BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas-SP: EDUCAMP, 1997.FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 1988.FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Vygoyski e Bakhtin. 3a ed. São Paulo: Ática, 1996.HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Tradução Carlos Nélson Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.INDURSKY, Freda e FERREIRA, Maria Cristina L. (orgs.) Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999.ORLANDI, Eni P. Análise de discurso.Campinas, SP: Pontes, 2000.PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica
à afirmação do óbvio. Tradução Eni P. Orlandi et al. Campinas, SP: EDUCAMP, 1988. (Coleção Repertórios)VYGOTSKI, Lev. S. Pensamento e linguagem. Tradução de Jefferson Luiz Camargo, revisão técnica de José Cipolla Neto. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989. (Psicologia e Pedagogia)

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