Luiza Petersen
Professora
Marcelo Câmara
Jornalista e escritor
(Publicado no Jornal do Brasil,
edição de domingo, 21.2.2010,
com "chamada" de primeira página.)
Muito se tem escrito, falado e teorizado sobre o "Profeta" Gentileza, (José Datrino, 1917-1996), personagem errante no Grande Rio no final do último século. Artigos, reportagens, livros, filmes, Gentileza virou tema e motivo de produção cultural e até tese acadêmica em universidade. Hoje as palavras, frases, bordões, traços, linhas e desenhos, quase todos sem sentido, que criou, escreveu e portava em um estandarte e que também gravou em viadutos e muros do Rio de Janeiro, foram transformados em mensagens e design de produtos hoje largamente comercializados em shoppings e por camelôs da cidade. Gentileza virou interesse na universidade, diversão intelectual; produto, marca, negócio no mercado.
Conhecemos o Gentileza, em meados da década de 1960 em Niterói, onde vivemos infância e juventude. Era encontrado sempre no centro da cidade, na Estação das Barcas, na Praça Araribóia, seu ponto mais constante, onde passava manhãs e tardes inteiras, anunciando o fim dos tempos, vociferando sem trégua contra a moral então vigente, os costumes da época, especialmente criticando comportamento, posturas e modos de trajar de rapazes e moças. Também viajava na barca Rio-Niterói, nos dois destinos. O que se sabia, à época, era que Gentileza residia em Niterói, cidade onde teve o auge de toda a sua "peregrinação" crítica e delatora nos anos de 1960 e 1970.
Nós, toda a geração que assistiu o aparecimento do Gentileza e com ele conviveu, quase que cotidianamente, pelo menos naquelas duas décadas, podemos afirmar que Gentileza nunca foi "poeta", nem, ao menos, trazia poesia ou poeticidade em suas falações. Gentileza também não foi "profeta" ou "filósofo". José Datrino era um motorista de caminhão alfabetizado que fazia frete em Niterói e cidades vizinhas. A versão generalizada que campeava à época, e jamais destruída, dava conta de que, por ter perdido toda a família no incêndio de 1961, do Gran Circus Norte-Americano na cidade, ficou louco, passou a vestir uma túnica branca, a portar uma tábua com inscrições e a "pregar" a segunda vinda do Cristo, ao tempo que condenava hábitos e costumes de população.
Furioso, agressivo, truculento, com cabelos e barba compridos, objeto de chacota de alguns, figura estranha para muitos e bicho-papão para as criancinhas, se vestia como um taumaturgo, um Antonio Conselheiro urbano. Mas nada tinha de poesia, de paz, de ternura ou doçura em suas palavras, como hoje se canta e se enaltece na academia e na mídia. Gentileza falava, desacertada e incansavelmente, menos sobre "gentileza", perdão e amor, e mais, e muito, e sempre, muito mais sobre pecados, demônios, crimes, castigos, martírios e apocalipses. Vociferava, ofendia e ameaçava espancar transeuntes. Algumas vezes, a polícia era chamada para "acalmar" o Gentileza, tal a sua ira insana.
Sua fala era moralista, medievalesca, maniqueísta, repleta de palavras odiosas, algumas vezes chulas e pornográficas. Tinha um discurso escatológico, esquizofrênico, completamente desarrazoado, contraditório e quase sempre surpreendente, digno de pena e de humor. Combatia o consumismo e satanizava a moda na sociedade e a vaidade das mulheres. As suas principais vítimas eram as mulheres de mini-saia ou com calças apertadas, de cabelos curtos, que usavam maquiagem, salto alto e adereços. E os homens com roupas extravagantes para a época como as calças apertadas, bocas-de-sino, camisas coloridas etc. A maioria da população, especialmente as mulheres e crianças, fugia, corria dele, no mínimo se assustava muito, se horrorizava com figura fantasmagórica do Gentileza.
Quem diz ou escreve diferente ou ao contrário disto sobre ele não conheceu o Gentileza, nunca o viu, não o conheceu, jamais o ouviu. Apenas perscruta as suas intrigantes inscrições, as pinça num cipoal léxico caótico, e constrói um personagem que quer, que lhe convém, mas que, verdadeiramente, nunca existiu. Após a sua morte, criou-se o mito Gentileza, curou-se o pobre Datrino, sublimou-se o pisicótico e se montou uma ideologia humanística, atribuindo-lhe mensagens de paz e amor ao próximo, respeito aos direitos humanos e convivência solidária e cristã - tudo baseado nas palavras e frases que ele escreveu, primeiro no estandarte que carregava em suas andanças e, depois, no final da vida, fixadas por ele nos viadutos da Avenida Brasil e outros planos da cidade do Rio de Janeiro. Se, nesse tempo carioca, ele se transformou em "profeta, poeta, filósofo, santo", se travestiu em uma figura gentil, cordial, serena, santa, dócil, piedosa, socialmente necessária e admirável - certamente, este personagem, para os que conviveram com ele nos anos 1960 e 1970 em Niterói, será, no mínimo, irreconhecível, espantoso, inimaginável.
"Gentileza gera Gentileza" era apenas um bordão curioso, rítmico, consonante, entre muitos outros semanticamente desastrosos, que, agora, é apropriado e sacralizado pela academia, no meio de uma infinidade de locuções ora sem nexo e ingênuas, ora típicas de um alienado, de um esquizofrênico. Transformá-lo em taumaturgo de verdade, filósofo, profeta, poeta ou designer gráfico é possível. Basta abstrair, criativamente, essas categorias, reinventá-las como idéias e conceitos, manipulá-las, transportando-as da fragmentada e doentia personalidade do pobre José Datrino para qualquer território "sadio" e lógico. Pronto: eis o "profeta" e mais uma "filosofia".
Recentemente, veiculou-se até que música de Marisa Monte denominada Gentileza, constitui a primeira e única homenagem a José Datrino, uma descoberta da cantora e compositora. Não é verdade. Muitos anos antes, Gonzaguinha, também crente nesse humanismo importante e válido, porém fabricado por intelectuais, sem a autoria de Datrino e deste póstumo, foi o primeiro a cantar com ingenuidade o personagem, e com muito mais beleza e propriedade, ao compor a música Gentileza, incluída em seu CD Gonzaguinha Cavaleiro Solitário (Som Livre, 1993).
4 comentários:
De todas as informações contidas nesse texto eu discordo de apenas uma com bastante certeza. Gentileza tinha família e são vivos até hj, os conheço. O resto é o resto.
Creio ser válido que nemtodos são só qualidades, como só defeitos e se alguns tiram do poeta o que há de bom, que o bem se espalhe.
Vale como esclarecimento e alerta para os desavisados! Parabéns aos autores!
O que há demais estranho nesse artigo é o tempo em que ele ocorreu, após todo culto ao personagem. Por que não foi escrito antes, quando poderia ser feito? Também cresci vendo Gentileza na frente da Barca, em Niterói, e a lembrança que tenho é de um homem doce e sorridente, com um olhar como se vivesse em um mundo distante. Não sei dizer se era louco ou um clarividente. Mas acredito que a força de um desmentido se perde quando ele ocorre anos depois, quando poderia ser feito no fervilhar ou nascer da questão. No início dos anos 90 já existia uma imprensa livre da censura estabelecida. Fica a impressão de que, ou faltou coragem ou, como acontece nos achismos, achou uma forma de escrever por escrever.
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