segunda-feira, 14 de março de 2005

29/08/2002

Estratégias de dominação e mapas de construção da hegemonia mundial

* Ana Esther Ceceña
Tradução: Maria Lúcia Badejo

... nossa dificuldade para encontrar as formas de luta adequadas não provém de que ainda ignoramos em que consiste o poder?

... o poder é a guerra, a guerra continuada com outros meios ...

Michel Foucault

O mundo capitalista, sua expansão e seus limites são construídos sobre a base da concorrência. A concorrência e o incremento constante do lucro, a luta pelo poder, a apropriação ilimitada de recursos de todos os tipos e a confrontação permanente de horizontes políticos e civilizatórios é o motor que estimula o desenvolvimento incessante das forças produtivas e de todos os mecanismos que contribuem para fixar as regras e margens do jogo do poder e para entrar na arena em condições de ganhador. Neste sentido, é da concorrência e desta situação consubstancial de conflito que emergem as possibilidades, conteúdos e alcances da conformação do sistema mundial e de seus espaços de vulnerabilidade.

Trata-se, sem dúvida, de um processo social que, como reconhece experimentadamente George Soros, está longe de responder a leis naturais de comportamento, e no qual os sujeitos (as classes, os grupos, os povos) são os que constroem a história. Uma história marcada pelo conflito, plena de contradições e na qual o poder é simultaneamente combatido e disputado e tem que ser reconquistado e redesenhado dia após dia.

A história é uma construção social, é cenário de atuação, dissipação e reconformação de sujeitos e, entre estes, sem dúvida, o sujeito mais organizado, com maior coerência e mecanismos de sustentabilidade no mundo contemporâneo é o da alta burguesia assentada nos Estados Unidos. Esta burguesia, a mais globalizada de todas, soube construir um Estado capaz de expressar seus interesses e ideologia particulares como da sociedade em seu conjunto, não só nacional mas mundial, e fazê-los valer utilizando todos os elementos a seu alcance: militares, tecnológicos, financeiros, diplomáticos e culturais. As formas de representação deste poderoso sujeito histórico variam e sua prática social de domínio e acumulação de poder se expressam de maneira diversa, de acordo com seus planos de atuação e com o conjunto dinâmico de elementos que compõem a complexidade concreta em que se joga a capacidade hegemônica global.

A hegemonia é, em todos os terrenos, a busca principal e o emblema da vitória. Em uma sociedade regida pela concorrência e o conflito, o triunfo próprio e a derrota do adversário constituem seu ethos e o elemento ordenador das relações sociais. Se a aproximação à análise do sistema mundial se faz a partir dos sujeitos em conflito e não de suas expressões coisificadas, é possível perceber o problema da concorrência como um campo de batalha no qual a posição e as estratégias empregadas são os elementos de definição de resultados.

A Hegemonia e seus planos de construção

A hegemonia é uma categoria complexa,. que articula a capacidade de liderança nas diferentes dimensões da vida social. O hegêmone, ou líder, que neste caso é necessariamente um sujeito coletivo, tem que ser capaz de dirigir pela força e pela razão, por convicção e por imposição. Ou seja, a hegemonia emerge de um reconhecimento coletivo que compreende tanto qualidades e preceitos morais que adquirem estatuto universal como a energia ou força para sancionar seu cumprimento.

Gramsci, preocupado não tanto com a relação entre estados, mas com a organização da classe operária e sua capacidade para formular uma interpretação do mundo que transcendesse a da burguesia, define-a justamente como a capacidade para transformar a concepção própria, particular, em verdade universal, seja porque as condições materiais que a geraram e a ação do sujeito coletivo que a sustenta conseguem construir amplos consensos, seja porque todos os mecanismos de correção social e estabelecimento de normatividades afins a esta concepção do mundo se impõem como essência moral e valores compartilhados, mediante o recurso à violência em todas as suas formas, justificando, assim, a sanção à dissidência em qualquer um dos campos da vida social.

A hegemonia é mais uma construção de imaginários que, em conseqüência, leva à reorganização das práticas sociais mas a construção de imaginários não é uma externalidade do sistema social, e sim seu produto mais profundo. "A hegemonia nasce da fábrica e para execer-se só tem necessidade de uma mínima quantidade de intermediários profissionais da política e da ideologia". Para Gramsci a essência da concepção do mundo está na vida cotidiana, na relação concreta e específica dos trabalhadores italianos com o mundo, relação que começa por seu espaço de socialização fundamental: a fábrica. Ou seja, a concepção do mundo não é imposta por Leviatan, este contribui para forjá-la garantindo o cumprimento das normas morais reconhecidas coletivamente (ainda que por um coletivo contraditório), mas a realidade imediata do trabalhador é a que traça seus horizontes de compreensão e de possibilidade.

A hegemonia só é possível mediante um compromisso estabelecido coletivamente que leva a avalizar e compartilhar as regras de um jogo que, se não oferece perspectivas de ganhar, pelo menos não atenta contra a coesão social; a governabilidade está garantida sempre e quando se jogue, sem mudar as normas, mesmo sabendo que o jogo não nos pertence, ainda que nos inclua.

A hegemonia entendida assim, como reconhecimento de uma ordem social natural ou inapelável, mediante a incorporação de seus valores como universais e produto do compromisso coletivo, requer uma construção simultânea em vários planos:

- militar, criando as condições reais e imaginárias de invencibilidade;
- econômico, constituindo-se em paradigma de referência e em sancionador, em última instância;
- político, colocando-se como fazedor e árbitro das decisões mundiais;
- cultural, fazendo da própria concepção do mundo e seus valores a perspectiva civilizatória reconhecida universalmente.

Para os generais do Departamento de Defesa (DoD) dos Estados Unidos, cujo saber está orientado pela eficiência prática, a hegemonia se apresenta como objetivo inapelável e sua busca circunscreve-se ao projeto das melhores estratégias para assegura-la. Sua missão consiste em defender os interesses nacionais dos Estados Unidos em qualquer circunstância e qualquer parte da geografia mundial. A hegemonia, neste caso, definida diretamente como dominação ou liberdade para pôr e dispor aos quatro cantos do horizonte, é um pressuposto que antecede a formulação de sua política.

"A manutenção da força militar e a capacidade de usa-la em defesa dos interesses da nação e do povo é essencial para a estratégia e compromisso com o que os Estados Unidos se aproximam do século XXI (...) Como a única nação no mundo que tem a capacidade para projetar um poderio militar de envergadura planetária para conduzir com efetividade operações militares de grande escala longe de suas fronteiras, os Estados Unidos têm uma posição única (...) Para manter esta posição de liderança, os Estados Unidos devem contar com forças rápidas e versáteis, capazes de enfrentar um amplo espectro de atividades e operações militares: desde a dissuasão e derrota de agressões em grande escala até a participação em contingências de pequena escala e o enfrentamento de ameaças assimétricas, como o terrorismo."

Os interesses vitais dos Estados Unidos, em torno dos quais se organiza toda a atividade do DoD, compreendem:

- proteger a soberania, o território e a população dos Estados Unidos;
- evitar a emergência de hegêmones ou coalizões regionais hostis;
- assegurar o acesso incondicional aos mercados decisivos, ao fornecimento de energia e aos recursos estratégicos;
- dissuadir e, se necessário, derrotar qualquer agressão contra os Estados Unidos ou seus aliados;
- garantir a liberdade dos mares, vias de tráfego aéreo e espacial e a segurança das linhas vitais de comunicação.

As dimensões do cenário

O cenário em que é dirimida a hegemonia mundial modificou-se substancialmente com dois acontecimentos paradigmáticos, cada um dos quais com implicações e seqüelas de diferente caráter:

A derrota na guerra do Vietnã, que provocou indiretamente uma crise de superprodução no setor militar e a urgência de racionalizar os enormes recursos empregados em uma aventura malograda.

A ruptura do mundo socialista, que provocou a repentina ampliação de territórios a ser controlados e incorporados.
O primeiro acontecimento acelerou a crise do fordismo ou da produção em massa desenvolvida sob os auspícios da escalada bélica e provocou uma profunda reestruturação nos processos de produção, que, em muitos momentos, abriu espaços de vulnerabilidade em áreas de definição tecnológica estratégica dos Estados Unidos e levou a um reposicionamento importante da Europa e da Ásia no novo cenário da valorização do capital. Entretanto, como veremos mais adiante, o jogo estratégico da burguesia assentada nos Estados Unidos terminou por recompor as condições de superioridade e liderança dos Estados Unidos na fixação do paradigma tecnológico e no controle dos recursos e dos territórios estratégicos.

O segundo acontecimento é resultado da guerra fria e, sem dúvida, uma conquista da força global articulada pelos Estados Unidos. A grande porção geográfica que representam esses territórios, o enorme número e amplo espectro de qualificações dos trabalhadores potenciais que aportam e as jazidas de petróleo, urânio e do resto dos minerais e outros recursos essenciais que contêm converte-os em um campo estratégico de disputa pelo poder ecpnômico mundial. A ruptura do ex-mundo socialista significa uma modificação de possibilidades relativas dos principais atores do jogo do poder, mas o risco político que ainda compreende, sua parcial ingovernabilidade e a incógnita acerca dos conflitos ativos que abriga impedem vislumbrar claramente o futuro de sua incorporação no acordo mundial.

As enormes riquezas naturais dessa região, que constituíam um dos elementos de contenção ao poder concentrado pelos Estados Unidos, ainda não são claramente vertidas sobre o mercado mundial, ainda que, efetivamente, sua fragmentação já não autorize a considerá-los como contrapeso. O mesmo ocorre ao ficar desarticulado o grande potencial bélico, científico e tecnológico desenvolvido pelo bloco socialista e que, em boa medida, está representado por seus cientistas ou pelos especialistas de diferentes tipos concentrados em seus sistemas de segurança (os criptógrafos da KGB, por exemplo). Isto justifica o interesse particular que concedem as estratégias de segurança nacional dos Estados Unidos à estabilidade política e à defesa das "causas da democracia" nesta região.

O cenário global de que dispõe o sistema mundial capitalista ampliou-se notavelmente. Entretanto, incrementou a incerteza e modificou seus elementos de risco: passou-se do risco controlado ou calculado ao imprescindível. A grande tecnologia bélica e a superioridade em efetivos treinados que foram postos em ação no Vietnã não puderam vencer o exército do povo, que, ainda que tenha lutado na guerra, era composto de civis sem disciplina nem treinamento bélico; foi uma guerra de resistência, não-convencional nem com normatividades preconcebidas, como as que ameaçam repetir-se, no futuro próximo, em versões tão variadas como as do mosaico cultural que subjaz à edificação capitalista simbolizada pelo pensamento único. Por outro lado, há um deslocamento difuso de um conjunto de "poderes" locais que desdobram ou questionam as organizações nacional-estatais militarizadas (aberta ou encobertamente), provocando uma relativa indefinição societal e a ruptura de normas estabelecidas; máfias, drogas, saques e um conjunto de forças desgovernadas que não reconhecem autoridade e funcionam com lógicas inesperadas tomaram o lugar do inimigo ordenado e previsível ou do aliado incondicional capaz de manter o controle social em sua jurisdição.

Efetivamente, o horizonte ampliou-se, mas seu controle se fez mais difuso. Nem o maior hegêmone, constituído agora como poder global, é capaz de dominar todas as forças sociais organizadas ou descontroladas que o formam. Neste contexto, o projeto de estratégias e o próprio pensamento estratégico são colocados em um lugar central dentro da organização da dominação e da concorrência. Isto repercute na totalidade militarista que foram adquirindo as relações mundiais, e que tem evidentes e profusas manifestações na vida cotidiana e na criação de imaginários, e explica por que a teoria e a práxis militares foram comendo os espaços de expressão do político.

Formas de representação do sujeito hegemônico

A discussão em torno das formas que assume a representação da classe ou de uma de suas partes, como expressão visível de uma concepção do mundo que corresponde ao imaginário criado pelo exercício cotidiano do poder, é muito ampla. O Estado, como espaço de síntese das contradições e dinâmicas sociais, não é nem pode ser concebido de maneira simplista como o instrumento da classe dominante, ainda que, de acordo com Michel Foucault, "...poder é essencialmente o que reprime". O Estado efetivamente representa os interesses e concepções dominantes da sociedade que lhe dá sustentação, mas não constitui sua expressão direta. O Estado é um espaço de mediação e é nessa medida que pode constituir-se em representação coletiva do imaginário social, construído sobre a base de relações de poder e de dominação entre as classes e grupos. O Estado é expressão das relações hegemônicas dentro do universo social que o constitui, sem perder a dimensão de suas contradições.

Sem entrar mais no terreno de uma discussão que exige uma reflexão à parte, o estudo da economia mundial, das relações mundiais de dominação e da construção da hegemonia nesse mesmo nível tem como um de seus referenciais fundamentais o Estado norte-americano. Este, efetivamente, aparece como o articulador e cabeça do capitalismo mundial, e como portador e avalista dos valores que, sendo-lhe próprios, são apresentados e resguardados como universais. O norte-americano, até agora, é o único Estado que tem a possibilidade real de ser representante, globalmente, de um poder também global, que emerge, entre outros, da escala planetária alcançada por seus processos econômicos, militares e, em certa medida, culturais.

Entretanto, esse poder global, no âmbito econômico (produtivo, tecnológico, comercial, financeiro) é produto da práxis capitalista da alta burguesia. O protagonista direto do processo de transnacionalização da economia é essa parte da classe dominante que se passou a chamar grande capital, termo que a identifica, mas que evita sua significação como sujeito.

A alta burguesia transnacional assentada nos Estados Unidos, à qual chamaremos alta burguesia norte-americana para abreviar (ainda que este termo requeira múltiplas precisões), é a portadora do emblema paradigmático do sistema mundial de produção, entendido em seu sentido mais amplo. Dentro do imaginário mundial, mesmo considerando o reconhecimento da liderança parcial de seus concorrentes-sócios, os símbolos do paradigma dominante continuam sendo erguidos pela IBM, Intel, Microsoft, Internet, Novartis, Monsanto, General Motors, Crysler, Exxon, Texaco, AT&T, ITT, Hughes, e tantos outros, como Coca-Cola e Sabritas, contribuem para definir os referenciais da vida e da reprodução social.

O trajeto entre o estabelecimento de lideranças e a construção de um reconhecimento geral de superioridade e direção só é possível mediante a conformação de um sujeito com múltiplas formas de representação articulada. O sujeito dominante do processo geral de reprodução ou do sistema capitalista mundial é constituído pela alta burguesia norte-americana que aparece sob a forma das grandes empresas transnacionais, dos volumosos fluxos de capital financeiro que vão fazendo e desfazendo economias e do Estado norte-americano, como portador do interesse geral e dos valores universais. Ou seja, o sujeito social dominante é um sujeito que se desdobra e que aparece, em nossa perspectiva, sob duas formas fundamentais: a do Estado norte-americano e a das grandes empresas transnacionais de base norte-americana. Por isso, as estratégias parciais de domínio e concorrência nos mercados, e a política do Estado no terreno da segurança nacional, mantêm uma coerência impecável em linhas gerais.

As estratégias de reafirmação da hegemonia

Entendemos que existe uma grande quantidade de mediações entre a ação individual e a síntese social que permite construir e/ou identificar um sujeito coletivo. Entretanto, desentranhá-las é parte de uma tarefa também coletiva à qual somente pretendo somar-me modestamente. Para isso, proponho realizar uma aproximação ao pensamento do Pentágono pela via de sua concepção do estratégico.

O projeto mais completo e sistemático sobre o ethos hegemônico está explicitado nos documentos oficiais do DoD e, particularmente, nos que se ocupam do projeto das estratégias de defesa da segurança nacional dos Estados Unidos, traçados a partir da última Quadrennial Defense Review (QDR).

A estratégia de segurança nacional para um novo século

O secretário de defesa, William Cohen, na ocasião em que apresentou seu informe de 1998 ao Congresso, assinalou que: "A América inicia o novo milênio como a única superpotência mundial, como a nação indispensável".

De acordo com o Annual report to te President and the Congress. National security strategy for a new century, "…os Estados Unidos se encontram em um período de oportunidade estratégico. A ameaça de guerra global retrocedeu e os valores fundamentais da nação de democracia representativa e economia de mercado são adaptados em muitos lugares do mundo (...) Suas alianças (...) se adaptam exitosamente".

Os objetivos gerais que o DoD deve garantir dentro esta estratégia de liderança para o novo milênio são:
- assegurar a criação de um ambiente internacional favorável aos interesses dos Estados Unidos;
- ter a preparação e presteza necessárias para responder ao amplo espectro de crise que ameaça os interesses dos Estados Unidos;
- ter a previsão necessária para estar preparados diante da incerteza do futuro próximo.

A política de defesa dos interesses nacionais dos Estados Unidos, que é a razão de ser do Estado norte-americano, está sintetizada nestes três objetivos, entretanto cada um deles encerra uma enorme complexidade e implica uma ação compartilhada e coerente de todas as representações desdobradas do sujeito hegemônico. Ou seja, o estratégico é um campo interdisciplinar no qual, sobretudo, é colocada em evidência "...l’articulation l’une avec l’autre de l’économie et de la violence comme double système de menace..."(Joxe:1997).

Com efeito, existe uma estreita vinculação entre os interesses econômicos e geoestratégicos, que tem como eixo a vantagem e/ou dominação tecnológica e manifesta-se o mesmo na estratégia de concorrência das empresas produtoras dos sistemas e equipamento de produção para uso civil que nos critérios de segurança aplicados à produção e concepção dos sistemas de comunicação ou armazenamento utilizados pelas forças militares norte-americanas.

"De 1940 até o presente, o Departamento de Defesa (DoD) encabeçou agressivamente a revolução na tecnologia de informação: a pesquisa e desenvolvimento em tecnologia de informação foi e continua sendo uma de suas competências fundamentais.

A Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA) do DoD, líder em tecnologias avançadas, apóia a indústria para melhorar a arquitetura e aplicações da infra-estrutura nacional de informação (NII). O DoD, como maior usuário dos serviços de informação, faz substanciais investimentos em infra-estrutura de informação." (Deutch:1994)

O grau de objetivação dos conhecimentos e experiências em todos os planos da vida social alcançado pelas forças produtivas estabelece uma barreira ou sanção tecnológica empregada no terreno econômico como instrumento de eliminação da concorrência e de atração de rendas tecnológicas (de plusvalor extraordinário), ou seja, de construção de uma posição de superioridade e liderança; e, no terreno militar como elemento de superioridade estratégica e de controle ou submissão do inimigo (o outro que compõe a quase totalidade da população mundial).

1. Assegurar a criação de um ambiente internacional favorável aos interesses dos Estados Unidos

A criação de um ambiente favorável aos interesses dos Estados Unidos implica, na realidade, a subjugação de qualquer expectativa de autodeterminação por parte do resto do mundo, assim como uma renúncia de fato à história e cultura próprias. Como é evidente, esta renúncia ao próprio ser requer efetivamente a construção de um contexto que a faça possível e que, inclusive, a faça aparecer como vontade geral. O mercado e a democracia, os dois pilares ideológicos da ofensiva hegemônica, sintetizam esta política, entretanto, não se requer apenas a imposição ou indução de um imaginário amigável com estes princípios e, sobretudo, com o conteúdo que lhes confere a ideologia do pensamento único, ainda que o impacto e penetração dos meios de comunicação de massa seja um eficaz criador de consensos mediante a aculturação ou diretamente a assimilação cultural que promove. A persuasão neste terreno não parece, entretanto, suficiente, a julgar pela grande quantidade de movimentos de resistência ou confrontação aberta que desencadeou. Necessitam-se estímulos mais efetivos e confiáveis, como os que põe em prática o DoD:

"Além dos outros instrumentos de poder, como a diplomacia e os investimentos e o comércio econômicos, o DoD tem um papel essencial na conformação de um ambiente internacional seguro a partir da perspectiva da promoção e proteção dos interesses nacionais dos Estados Unidos (...) fortemente integrado com os esforços diplomáticos." (Cohen:1999. Sublinhados meus)

As finalidades declaradas são três:
Promover a estabilidade regional. Fortalecimento dos aliados e de seus compromissos e vínculos com os Estados unidos mediante, entre outros, transferência de equipamento e armamento e atividades de entretenimento.

Prevenir ou reduzir conflitos e ameaças. Esta é uma das peças chave da estratégia. As medidas de prevenção são enfocadas em: reduzir ou eliminar as potencialidades ou capacidades nuclear-biológico-químicas (NBC); prevenir e dissuadir o terrorismo e reduzir a vulnerabilidade dos Estados Unidos mediante o incremento na gama de atividades de inteligência; proteger a infra-estrutura decisiva e o pessoal do DoD; dissuadir a produção e afluência de drogas ilegais nos Estados Unidos e seus espaços circundantes; reduzir as condições estimuladoras de conflitos.

Dissuadir agressões mediante o emprego das forças norte-americanas de paz em regiões chave e mediante a demonstração explícita de seu poderio e capacidade para garantir a segurança de seus interesses e a vontade para fazê-los valer, onde e quando sejam desafiados.

Ou seja, haveria dois mecanismos para cumprir a alta missão atribuída ao DoD e que se estende a um território definido não pelas fronteiras, mas pelos interesses nacionais dos Estados Unidos: a aceitação universal desses interesses acima dos das outras nações e a inibição ou desativação prematura de qualquer indício de dissidência ou, o que dá na mesma, de autonomia de decisão do resto das nações ou povos do mundo.

2. Ter a preparação e presteza necessárias para responder ao amplo espectro de crise que ameaça os interesses dos Estados Unidos

Apesar dos avanços na construção de um ambiente favorável, o mundo continua sendo complexo, dinâmico e perigoso na perspectiva do próprio DoD, que identifica as seguintes tendências como ameaças a sua segurança:

- Conflitos transfronteiriços de larga escala (notoriamente, Iraque-Irã e as Coréias).

- Fracasso ou desaparecimento de alguns estados, previsto daqui ao ano 2015 (notoriamente, Iugoslávia, Albânia e Zaire).

- Perigos transnacionais: violentas organizações terroristas de motivação religiosa que eclipsaram as mais tradicionais, de motivação política e organizações terroristas com motivações étnicas ou nacionalistas. Complexização e sofisticação dos movimentos sociais identificados como terroristas ou de ameaça ao sistema. Tráfico de drogas e de armamento, que tendem a desgastar a legitimidade de governos amigos. Desastres ambientais. E, curiosamente localizados como perigo transnacional, "incontrolados fluxos de migrantes".

- Afluência de tecnologias potencialmente perigosas. O vínculo entre conhecimento letal e movimentos terroristas dedicados a catástrofes massivas representa um novo paradigma para a segurança nacional. Os conhecimentos letais enunciados são de três tipos, todos relacionados com os espaços estratégicos de controle tecnológico: os que concernem à fabricação e proliferação de armas nucleares, biológicas ou químicas (NBC); os que concernem à fabricação de veículos aéreos e meios para controlar o espaço e os que concernem à capacidade para gerar, utilizar ou inutilizar informação que possa ser empregada com fins de controle ou desestabilização.

- Há outros riscos relacionados com situações imprevisíveis (wild card scenarios), como a emergência de imprevistas ameaças tecnológicas; a perda de acesso às facilidades decisórias e às linhas de comunicação em regiões chave; a chegada de partidos hostis em países amigos. "A capacidade militar dos Estados Unidos deve ser suficientemente flexível para fazer frente a estes eventos inesperados."

3. Ter a previsão necessária para estar preparados diante da incerteza do futuro próximo

Esta iniciativa compõe-se de quatro partes principais:

- modernização tecnológica que incorpore inovações de fronteira;
- revolução nos assuntos militares desenvolvendo as habilidades militares. "...as revoluções tecnológicas afetaram a natureza do conflito". Por isso, propõe-se
- guarnecer-se mediante novas tecnologias que ofereçam às forças norte-americanas maior capacidade através de conceitos, doutrina e organizações avançados, que lhes permitam dominar qualquer campo futuro de batalha, incluindo os assiméticos." É preciso fortalecer "tanto a cultura quanto a capacidade ou aptidões." (Cohen:1988. Sublinhados meus)
- revolução na engenharia de infra-estrutura e apoio;
- proteger-se de futuras ameaças para ser capazes de manejar os riscos em um ambiente de recursos restritos. Para isso, é necessário manter um amplo esforço em pesquisa e desenvolvimento; vincular-se com indústrias especializadas em novas tecnologias e desenvolver programas de R & D que possibilitem a adoção ou adaptação das tecnologias comerciais às necessidades militares. Uma iniciativa de grande amplitude contra as ameaças futuras requer garantir que as forças norte-americanas tenham a capacidade de inteligência necessária.

O eixo tecnológico na estratégia de liderança mundial para o século XXI

O enorme acúmulo de conhecimentos concentrados e vertidos na criação de uma ampla e pormenorizada estrutura de automatização e apropriação da natureza tornou complexa a organização social em todas as suas dimensões, incluída, é claro, a militar. Por isso, e considerando a mudança no cenário mundial e a conseqüente "revolução nas questões militares" contemplada no ODR (Cohen:1998), a inovação tecnológica e a possibilidade de colocar-se na fronteira do conhecimento nos campos fundamentais adquirem a maior prioridade.

O fim da guerra fria, as escalas planetárias do processo de reprodução, dominação e concorrência e a variedade de cenários e universos culturais que compõem a totalidade mundial outorga às atividades de inteligência e prevenção (ou repressão antecipada) de conflitos uma enorme importância: "A inteligência representa a primeira linha de defesa" (Deutch:1994).

Isto não elimina a necessidade de estabelecer uma superioridade na qualidade dos armamentos e nos mecanismos correspondentes à guerra convencional, e sim multiplica os terrenos de busca tecnológica e outorga à centralização e processamento de informação um lugar estratégico. No dizer de Foucault, "o poder não tem necessidade de ciência, mas de uma massa de informações que, por sua posição estratégica, ele é capaz de explorar."(1977, p. 121)

Para isso, dentro dos que são considerados os possibilitadores decisivos desta linha estratégica encontram-se:
- um sistema de inteligência com alcance global;
- comunicações globalizadas e impedimento de interferência por parte do inimigo. Controle dos mares e espaço aéreo;
- superioridade em espaço. Reconhecimento, vigilância, inteligência, computadores, comunicações, controle e direção globais (command, control, comunications, computers, intelligence, surveillance and reconnaissance, C4ISR). Para manter a vantagem atual no espaço, mesmo quando mais usuários desenvolvam suas capacidades, os Estados Unidos devem dedicar suficientes recursos de inteligência para monitorar os usuários externos de ativos assentados espacialmente.

"Para ser realmente uma força de amplo espectro, os militares norte-americanos devem ser capazes de derrotar inclusive os adversários mais inovadores. Aqueles que se opõem aos Estados Unidos utilizarão de modo crescente estratégias e táticas não-convencionais para compensar a superioridade dos Estados Unidos."(Deutch:1994)

A tecnologia, no costume capitalista, é sem dúvida a maneira de estabelecer espaços privados de controle e vantagens que gerem condições para a construção e o exercício do poder. Este poder se constrói e se manifesta, como assinalou-se no início, nas quatro dimensões principais da organização e reprodução da sociedade mundial e, por isso, em todas elas é possível identificar uma infra-estrutura tecnológica que serve como eixo de articulação e, evidentemente, de dominação.

Para efeito de argumentar a coerência e colaboração entre as duas figuras de representação do sujeito hegemônico que mencionamos no início, é possível identificar alguns mecanismos de alta prioridade, tanto para as agências de segurança dos Estados Unidos como para a alta burguesia transnacional norte-americana.

Uso dual da tecnologia militar e civil. As pesquisas realizadas pela agência de pesquisa e desenvolvimento do DoD, ARPA, foram a base da graficação por computador; do tempo compartilhado; dos pacotes com interruptores que mais tarde deram lugar à Arpanet, de onde derivou a Internet; da inteligência artificial, que compreende o reconhecimento de voz, os sistemas especialistas e a visão digital, e da engenharia informática. Os esforços tecnológicos da ARPA vão desde pesquisa básica até aplicações avançadas e testbeds.

Já em 1994 a ARPA estabeleceu vários projetos experimentais de redes gigabit/segundo para explorar em arquitetura, manejo e segurança de redes e, atualmente, as linhas dorsais que dão suporte à rede Abilene nos Estados Unidos, instaladas pela MCI, têm uma velocidade de 8 gigabits por segundo, enquanto a melhor rede alemã, que é a que a segue, tem uma velocidade de 2 gigabits por segundo. A diferença qualitativa é abismal e estabelece uma brecha que tem repercussões em todas as atividades relacionadas com essas redes (Ornelas:2000).

Mesmo assim, o desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação constituiu um componente essencial da plataforma de decolagem da produção mundial pós-fordista, ou seja, dos processos de trabalho off shore (maquilas no norte do México, o Sudeste Asiático e, mais tarde, o Caribe e a América Central) e das redes de produção altamente automatizadas e espacialmente desmembradas que conhecemos hoje.

"Muitos elementos de computação com modem têm suas origens nas pesquisas auspiciadas pelo DoD e a infra-estrutura de pesquisa criada por ele continua produzindo tecnologia necessária para o NII. A contribuição do DoD aos primeiros supercomputadores foi uma contribuição à massiva introdução de sistemas de funcionamento em paralelo no final dos anos 60 e continua apoiando o desenvolvimento da tecnologia computacional de fronteira com o programa de alto rendimento em computação e comunicações. (Deutch:1994)

A vinculação estreita entre a indústria civil e militar está presente em todos os campos importantes de desenvolvimento tecnológico, mas destacam-se entre eles, na atualidade, os seguintes:

- Criação de redes tecnológicas avançadas em coordenação com a indústria e as universidades, baseando-se no conceito de trama global (global grid) e para os fins militares e civis dos Estados Unidos.

- Alto rendimento em computação, criando sistemas capazes de realizar 100 bilhões de operações por segundo e, posteriormente, trilhões de operações por segundo.

- Tecnologia para sistemas inteligentes. Incluem deciframento (ou compreensão) de imagens, de linguagem humana e integração inteligente de informação cujos propósitos são desenvolver tecnologia de visão artificial para aplicações como a inspeção de sistemas de produção, permitir a interação direta e natural das forças militares com sistemas complexos com base na pesquisa lingüística e conseguir a integração e processamento de informação heterogênea e de fontes díspares pra apresentá-la aos usuários organizada de acordo com sua relevância.

- Melhoramento da tecnologia informática reduzindo o tempo de criação, incrementando a confiabilidade e melhorando sua manutenção.

- Eletrônica avançada. Substancial melhoria no equipamento (hardware) para a NII. As áreas de pesquisa compreendem supercondutores de alta temperatura, materiais de alto rendimento como o arseniuro de gálio e módulos multichip (MCMs) que permitem a integração de um sistema completo em um só módulo sem componentes separados. Com os MCMs os sistemas eletrônicos alcançam altos rendimentos, muito maior confiabilidade, menor consumo energético e menores custos de produção, permitem novos níveis de rendimento e miniaturização em equipamento de cálculo e comunicação.

- Deciframento do genoma humano

Criação de uma normatividade universal, tanto no terreno da guerra através de organismos como a OTAN e a ONU e da gestão econômica global mediante a implantação de critérios determinados supranacionalmente pelo Fundo Monetário Internacional ou o Banco Mundial, entre outros, como no da produção através do estabelecimento de equivalentes ou referentes gerais tecnológicos que marcam as pautas da produção, a organização produtiva e a concorrência.

O DoD apóia a criação de normas internacionais para os serviços integrados de informação em amplitude de faixa e é pioneiro em pesquisa, desenvolvimento e avaliação de criptografia, de verificação de tecnologia de computação e de serviços e produtos seguros de informação. Foi o encarregado de promover um protocolo único para as comunicações internacionais (TCP/IP) e, portanto, garantiu com isso sua supremacia sobre o sistema de comunicações global.

Estas normas são fixadas de acordo com os critérios estratégicos de segurança, mas também com as condições e possibilidades de suas indústrias de engenharia de informação, de engenharia nuclear, etc. Desta forma mantém-se uma liderança imposta simultaneamente pelas razões da economia e da "persuasão militar".

O DOD é líder no uso global da tecnologia de informação. "Apenas as corporações verdadeiramente grandes têm sistemas internacionais de comunicação que se aproximam aos do DoD em tamanho e amplitude, e apenas as mais avançadas destas se aproximam da heterogeneidade, complexidade e diversidade de vínculos integrados que tem o sistema de comunicações do DoD". (Deutch:1994)

No caso destes sistemas tecnológicos, é tão importante a escala de utilização como a produção, já que sua inovação e as facilidades que outorga ao resto dos setores se multiplicam com a intensidade e amplitude de sua utilização.

A amplitude de alcance destes sistemas é base, também, da articulação de interesses em torno do controle de recursos estratégicos que são de utilidade múltipla mas essencial, como o petróleo, a biodiversidade ou o urânio. "Na América Latina houve (...) uma intensa atividade de teleprospecção coordenada pelas transnacionais petroleiras (Gulf, Exxon), os grandes fabricantes de geradores, turbinas e centrais elétricas nucleares (General Electric, Westinghouse) e – é claro -, os gigantes da indústria aeroespacial e de telecomunicações (Litton, Hughes, Aircraft) em busca de jazidas de petróleo, urânio e cobre na Amazônia (Brasil e Peru),Venezuela e Chile". (Rosaslanda:1998, p. 75). Litton e Hughes são empresas que funcionam sob o auspício quase total do DoD.

Conclusão

O estudo da concorrência econômica e do processo de concentração de capital é por si mesmo incapaz de dar conta da complexidade do processo de dominação e da construção da hegemonia mundial, apesar de sua essencialidade. A dominação econômica não pode se desinteressar da violência que lhe é imanente e que se evidencia na dimensão militar de organização do poder.

O sujeito hegemônico, sujeito desdobrado que desdobra sua estratégia de poder em todas as suas dimensões de representação, somente pode ser apreendido em sua integridade, que é também o assentamento de suas condições de possibilidade. E é neste horizonte de aproximação que se evidenciam os complexos e variados mecanismos de construção do poder hegemônico, mas também é ele que permite vislumbrar suas condições de vulnerabilidade e suas fronteiras consubstanciais ou limites civilizatórios. Por fim, "as forças presentes da história não obedecem nem a um destino nem a uma mecânica, e sim ao acaso da luta". (Foucault:1977, p. 20)

* Cientista social da revista Chiapas e representante do Instituto de Investigaciones Econômicas (UNAM) do México
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